sexta-feira, outubro 29, 2021

Não aprovação do Orçamento de Estado para 2022


Vamos supor por uns momentos que António Costa (AC) não é estúpido.

Um homem que saiu do Governo de Sócrates antes dos escândalos que o abalaram (passando estranhamente de ministro para presidente de câmara, é certo que de Lisboa); que negociou brilhantemente para unir a esquerda a fim de governar (note-se, depois de ter perdido as eleições), algo que nunca antes tinha sido conseguido por ninguém; que manipulou sempre o Parlamento para que ele nunca fizesse algo radicalmente contra a sua vontade (lembro o aumento dos professores em que AC levou o PSD a recuar atabalhoadamente; ou quando fez com que o PSD propusesse e aprovasse uma regra que evitou a sua ida frequente à Assembleia da República); que tem vindo a anular o peso dos partidos à sua esquerda no eleitorado; que “secou” a oposição por parte do PSD; etc.

Bom, proponho que um homem destes pode ser considerado sem favor um génio político (que é o que eu acho que ele realmente é – e a História há de lhe fazer justiça).

Sendo assim, várias interrogações se me levantam:

Porque é que Passos Coelho deu, por exemplo, a vice-presidência do seu governo ao partido à sua direita e AC nunca deu um lugar que fosse no seu governo a nenhum dos partidos à sua esquerda (por exemplo, os ministérios da Cultura ou do Ambiente; ou uma Secretaria de Estado da Cidadania e a Igualdade, ou do Património Cultural)?

Porque é que, nos últimos meses, AC se recusou terminantemente a remodelar o governo, mesmo sabendo que essa era a vontade da maioria dos eleitores portugueses?

Porque é que, desde as últimas eleições legislativas (em que ele não teve a maioria absoluta que desejava), ele tem vindo a insultar cirurgicamente o principal líder da oposição e o Bloco de Esquerda, e a humilhar o PCP, alienando a sua boa vontade?

Porque é que ele foi intransigente e não aceitou o suficiente do PCP e BE (cujas propostas me pareceram muito razoáveis - principalmente justas -, nada radicais, até oportunas dado que temos este ano um pouco de folga orçamental para as aplicar) de modo a eles poderem salvar a sua face ao abster-se? Colocando as suas cartas de forma a deixar o PCP e o BE numa "no-win situation": o que quer que eles fizessem, ficariam a perder (e, nomeadamente, a perder votos, como se tem vindo a verificar nos últimos anos)? E, pelo contrário, passou sempre a mensagem de que a intransigência estava do lado do BE e do PCP, quando todos sabemos que para haver teimosia tem de haver dois teimosos, não basta um só? 

Para finalizar: como é que este génio político, mestre de negociações impossíveis, fracassa totalmente na aprovação do Orçamento, chegando ao ponto de não ter, no Parlamento, nenhum partido além do seu a votá-lo favoravelmente?

A resposta é: não foi um fracasso! Obedeceu antes a uma estratégia cuidadosamente pensada, planeada e executada, para chegarmos a eleições antecipadas onde os partidos à esquerda são vistos como os “maus da fita” (quando não lhes foi dada hipótese nenhuma de proceder de modo diferente) e os partidos à direita estão envolvidos em lutas fratricidas. Ou seja, o cenário ideal para alcançar a tão desejada maioria absoluta.

Cereja em cima do bolo: quer ganhe, quer perca as eleições (cenário absolutamente improvável), AC ganha sempre porque, se perder, a culpa terá sido sempre dos outros e não sua.

Há apenas uma carta que ele não controla totalmente, que é o Presidente da República. Daqui pode vir uma surpresa que estrague o planeado (eleições, contra um BE e um PCP enfraquecidos, e com o PSD em lutas intestinas). Mas atendendo a que Marcelo tem contas antigas a ajustar com o PSD (e tem-no feito sempre), pode ser que nada aconteça de surpreendente. Mas nunca se sabe... 

O certo é que António Costa é um homem muito inteligente, que ouve os outros (é inverosímil acreditar que tudo isto venha só da cabeça dele, deve ter "think tanks" que o aconselham, e ele ouve-os realmente, muito provavelmente sem seguir acriticamente tudo o que eles lhe dizem) e que é um autêntico mestre de xadrez (que antecipa muitas jogadas à frente e sabe bem aproveitar-se da ingenuidade e dos passos em falso dos adversários).

sexta-feira, outubro 15, 2021

Aproveitando para esclarecer alguns lugares-comuns

 


Um conhecido meu enviou-me a última crónica de Miguel Sousa Tavares, "O Dinheiro", de 09/10/2021, publicada no Expresso. Para eu lhe dar a minha opinião.

Esta foi a minha resposta que eu lhe enviei (omito aqui qualquer referência identificativa, para garantir a sua total privacidade):


"Meu caro,

Muito obrigado pela sua atenção. Confesso-lhe que foi muito educativa esta leitura.

Não se assuste com o que vou dizer agora: acredita que desde há uns bons 20 anos que eu me recuso a ler ou a ouvir o que quer que seja do Miguel Sousa Tavares? Porquê? Porque acho-o uma pessoa muito pouco séria, muito pouco informada e um grande manipulador de emoções.

Assim, na verdade, recebi este seu mail como uma bela oportunidade para verificar se ele entretanto mudou ou continua na mesma (ou, quem sabe?, terá ficado pior).

Foi, portanto, com muita curiosidade e muito interesse que li este artigo “O Dinheiro”, publicado no Expresso de 9/10/2021.

É certo que ele diz aqui algumas (poucas) coisas que não me parecem incorretas: por exemplo, sobre os benefícios da social-democracia, com o que concordo genericamente.

Mas, ao mesmo tempo, diz verdadeiras barbaridades. Que passo a discriminar.


«O dinheiro (…) destrói casais, afasta irmãos, estilhaça famílias, espalha o ódio e a inveja onde antes reinava uma harmonia, talvez pobre, mas pacífica.»

O quê??????

A pobreza pode levar a tudo menos a harmonia e a paz! Pelo contrário, facilita por demais uma extrema violência. Só para dar um exemplo, segundo o estudo "Geração XXI" que já referi várias vezes nas minhas conversas, os 10%, repito, 10% das crianças (75% sofrem maus-tratos ditos “normais”) que são realmente maltratadas com extrema violência (são vítimas de sovas com objetos duros, de chicotadas com cintos, de queimaduras infligidas com água a ferver ou com fogões ligados, etc.) pertencem a famílias mais pobres. Onde vê Miguel Sousa Tavares a harmonia e a paz no meio da pobreza? Só se for nos manuais de propaganda do Estado Novo.


«Certos povos do Norte, de tradição luterana, temem o dinheiro e o seu poder nefasto sobre as frágeis almas humanas. Desconfiam das grandes fortunas, taxam-nas com impostos, perseguem-nas com uma crítica social (…) Mas ai dos ricos desses países do Norte que se atrevam a fugir ao Fisco, a refugiar-se em offshores, (…)»

O quê????!!!!

Mas alguns desses países ricos do Norte são eles próprios uma certa forma de offshores: por isso é que a maior parte das nossas empresas de topo (do PSI-20) não pagam impostos aqui em Portugal e vão pagá-los, por exemplo, à Holanda. Isto é, nós pagamos o que compramos e são os outros (os tais do Norte, bonzinhos e honestos, mas muito pouco solidários) que beneficiam dos impostos aplicados ao nosso dinheiro!


«(…) aqui quisemos acabar com os ricos, (…) e, sim, conseguimos acabar com os ricos, (...)»

O quê???????!!!!!!!!

Mas como é que acabaram os ricos? Será que o Miguel Sousa Tavares não sabe dos milhares de milionários que existem hoje em Portugal (mais de 136.000, com cerca de 19.000 a terem surgido em 2020, todos «com uma riqueza avaliada acima de um milhão de dólares», segundo o Jornal de Negócios de 22 de junho de 2021)?

No nosso país que é destacadamente o pior da Europa em desigualdade associada a graves problemas sociais e de saúde, com um fosso gigantesco entre os muito ricos e os pobres (ver gráfico no topo, em que pior do que nós só os Estados Unidos - e isto ainda antes da pandemia!). Duvido muito que o jornalista Miguel Sousa Tavares não saiba disto tudo.

E quando dá o exemplo de João Rendeiro, será que ele não se apercebe da contradição em que cai ao falar precisamente de um dos muito ricos que, até 2008, nunca foi incomodado por ninguém enquanto ia aumentando a sua fortuna?


Enfim, ideias confusas, informação falsa, contradições, tentativas de humor completamente falhadas e sem graça, passadismo – a ir buscar coisas de há 50 anos, hoje, que temos um mundo que nada tem a ver com aquele que ele recorda…

... e mal, pois, por exemplo, a história que ele conta do Otelo como sendo verdadeira é uma daquelas que já foi recontada milhares de vezes tendo como protagonistas nacionais e estrangeiros, como o Álvaro Cunhal, o Mário Soares, até Ronald Reagan, e tantos outros no lugar de Otelo! Veja-se este excelente artigo absolutamente esclarecedor sobre este assunto no Diário de Notícias de 01/08/2021, de Rogério Casanova:

Só não fico estupefacto pelo Expresso ter nos seus quadros Miguel Sousa Tavares e estar a pagar-lhe para ele escrever estas enormidades, porque o próprio Expresso (que eu também já deixei de ler desde há uns 15 anos) se tornou um jornal de muito, muito baixa qualidade.

Não tenho, portanto, razões para mudar a minha decisão de não voltar a ler ou ouvir Miguel Sousa Tavares. Mas muito obrigado à mesma, porque me permitiu verificar se a minha ideia acerca dele já estaria desatualizada. Não está.

Um forte abraço, muito obrigado mais uma vez e votos de um ótimo fim de semana!

Rui"