quarta-feira, junho 23, 2004

A "palmada pedagógica"

Tu achas que a "palmada pedagógica" dada a uma pessoa a quem se convencionou chamar criança (a um adulto não, a ti nunca, que horror!) se justifica em certos casos e não lhe faz mal nenhum.
Das duas uma:
ou tu assumes que esta posição serve apenas para não te sentires culpada de, num momento em que perdes o controlo, dares a tal palmada dita pedagógica... e sobre a fundamentação ética desta tua posição estamos conversados;
ou acreditas honestamente no princípio subjacente à palmada e tens então, coerentemente, de defender que quem a aplica ao teu filho pode ser qualquer adulto (o merceeiro do bairro, o polícia da esquina, a professora da escola, etc).
Isto porque, segundo tu dizes, a tua defesa da palmada vem duma necessidade do teu filho (por exemplo, uma necessidade de segurança pessoal dele) que só pode ser resolvida e satisfeita com essa tal palmada, o que torna portanto irrelevante quem a dá.
Estás disposta a defender activamente que qualquer adulto possa bater no teu filho – uma palmada pedagógica, claro, seja o que for que isto queira dizer em termos concretos?
Se não estás, peço-te: pensa tudo outra vez desde o princípio.

Acerca da vitória da equipa portuguesa no jogo com a equipa espanhola e a auto-estima

Não consigo compreender nem partilhar uma alegria cuja fonte assenta na tristeza de outros.
Consigo compreender e partilhar a alegria por os jogadores portugueses terem realizado um bom desafio. O mesmo para o facto de esse bom desempenho se ter traduzido em golos e numa vitória. Não consigo compreender a alegria que nasce da derrota dos outros que são, em tudo, pessoas iguais a nós.
Sei que é uma ilusão pensar que as vitórias da equipa portuguesa de futebol (dirigida, aliás, por um estrangeiro) vão fazer subir a nossa auto-estima. Se nem a Expo 98, esse sim, um evento grandioso, complexo e difícil de realizar, o conseguiu - veja-se como estamos!!
Porque a auto-estima não nos é dada por 11 indivíduos a jogar futebol durante 90 minutos connosco sentados no sofá aos gritos.
A auto-estima conquista-se no dia-a-dia; e, como tudo o que tem realmente valor, está sempre a escapar-se-nos se não lutarmos pessoalmente, corpo-a-corpo, empenhada e constantemente a fim de a podermos conseguir alcançar e manter.

domingo, junho 06, 2004

A dor infinita (2)

As pessoas que sofreram maus tratos na infância (sem preocupação de hierarquizar):
- atraem e sentem-se atraídas por quem as vai maltratar ainda mais;
- não identificam nem reconhecem quem realmente as ama;
- comportam-se de modo a que as pessoas não as amem e assim podem confirmar a sua auto-imagem de não merecedoras de amor;
- maltratam outros, principalmente os mais fracos;
- suicidam-se (de facto, com drogas ou com álcool) ou pensam frequentemente no suicídio pois só a ideia da morte lhes traz algum alívio à dor;
- procuram sempre a "mãe" ou o "pai" que as venha salvar; por paradoxal que pareça, preferem sempre a má "mãe" ou o mau "pai".

Dois livros obrigatórios sobre esta e outras temáticas afins:
A Loucura da Normalidade, Arno Gruen, ed. Assírio e Alvim
Mulheres que amam demais, Robin Norwood, ed. Sinais de Fogo

sábado, junho 05, 2004

A dor infinita (1)

São muitas e graves as consequências que as pessoas que sofreram maus tratos na infância têm de suportar (ver uma lista condensada delas, por exemplo, em MAGALHÃES, Teresa, Maus Tratos em Crianças e Jovens, Quarteto Editora, Coimbra, 2002).
Mas há uma que é tanto mais dramática quanto raro é referida: as pessoas matratadas de forma continuada na infância e na juventude acabam por adquirir a convicção profunda de que não poderão nunca ser amadas. Na verdade, para estas pessoas, a ideia de que alguém as possa amar simplesmente pelo que elas são torna-se inimaginável.
Como ninguém consegue (sobre)viver com a certeza desta impossibilidade de amor, estas pessoas recorrem então a duas possíveis vias para enganar este desespero.
Uma das vias é o exercício do poder: já que não acreditam poderem ser amadas, pelo menos são obedecidas, isto é, elas trocam o amor livremente dado por uma sua contrafacção: a submissão imposta por uma força que é, na realidade, ausência de força interior (para suportar esta dor). Com todo o cortejo de horrores que esta opção normalmente acarreta para os mais fracos, principalmente para as crianças.
A outra via consiste em fazerem o que podem para conseguirem merecer a gratidão, outro substituto do amor, pobre, mas aceitável: serem boas, serem obedientes, irem ao encontro das expectativas dos outros, humilharem-se, etc., a muito elas estão dispostas para obterem um pouco de reconhecimento que amenize a dor de não serem amadas.
Que não haja ilusões: a situação destas pessoas é verdadeiramente trágica. Façam elas o que fizerem, sejam quais forem os extremos a que cheguem (e há um longo continuum que vai desde um Hitler ou um Estaline até aquelas desgraçadas que chegam a ser mortas pelos seus maridos mas que são incapazes de os abandonar), jamais, repito, jamais assim a ausência de esperança da sua condição é passível de ser superada. E, concomitantemente, este sofrimento é quase sempre invisível aos olhos das outras pessoas e é quase sempre por estas ignorado. Por nós. Por mim.