domingo, fevereiro 27, 2005

O meio do dia

O meio do dia, as nuvens que poderiam pressagiar desgraças se não corressem tão rapidamente em direcção ao mar, deixando para trás olhos molhados de gaivotas que não partem.
As vozes que me aprisionam, um coração dentro do peito e dorido porque não voa apesar de eu perguntar, perguntar tanto.
A pedra na minha mão, histórias de naufrágios, olhos cansados, o telemóvel vazio, sem luz.
Deitado de encontro à memória triste da violência, esgravato o meu futuro próximo de onde caem pequenas bagas de sabor acre, sonhos de outras maçãs doces realmente nunca comidas mas que chamam por mim quando volto a cara para o céu e para o vento de cabelos sem dona. De onde se desprende um gesto salgado pelo medo e um som de pressentida ternura.

Amor(es)

Não vos faz confusão que, para cada pessoa, seja tão difícil definirmos o que sentimos por ela?
Esta faz-nos sentir melhores do que somos quando estamos ao pé dela, mas longe dela com facilidade a esquecemos.
Por aquela sentimos ternura e desejo, mas nem pensar numa vida a dois.
Aqueloutra faz-nos sentir verdadeiramente apaixonados, sofremos quando estamos afastados, mas é uma paixão de que o desejo está completamente ausente.
Bom, e eu diria que as variações não têm fim, isto apenas no domínio do amor. Mas até esta divisão entre amor e amizade é completamente artificial, porque são tantas as vezes que não conseguimos traçar uma fronteira nítida entre os dois!
Tudo isto é um bocado para o confuso mas, reconheçamo-lo, também tem a sua piada.

O deus das pequenas coisas?

Um episódio que encontrei há muitos anos num livrinho de um escritor italiano (Elio Vittorini?, Vasco Pratolini?, não me lembro):
Trata-se de um camionista que está prestes a violar uma rapariga a quem deu boleia, quando descobre que ela tem as meias rotas. Isso fá-lo parar porque, de repente, esse pormenor triste comove-o profundamente. A partir daí, mesmo esbarrando na raiva e na desconfiança da rapariga, ele não consegue parar de ser carinhoso para ela.

sábado, fevereiro 19, 2005

A raiva

A raiva no mais escondido das pessoas.

Existe tanta. À vista? Claramente sim nos miúdos. Escondida, negada, mascarada nos adultos.

Ela surge-me quando opto por não ser franco e, assim, condescendo com a minha fraqueza, com o abuso dos outros; quando, para evitar o conflito, procuro a distância impossível de conseguir; quando distribuo mágoa em vez de carinho; quando, ao espelho ou nos outros, vejo aquilo que em mim detesto.

História sem moral

"Um monge chinês apaixonou-se por uma bela cortesã que lhe disse: espera aqui mil noites, debaixo da minha janela. Na 999ª noite, o monge pegou no seu banquinho e foi-se embora."

Mil razões.

Sei que não aguento, principalmente se estiver mesmo apaixonado, nem 9 noites, quanto mais 999. Por isso faço batota: de vez em quando escapo-me. Mas como sou mais ou menos honesto, já não volto a trazer o banquinho, limito-me a passar por baixo da janela.

47 anos. Separado. Um filho. Sem namoradas.

47 anos. Assusta-me o pouco que me falta para morrer (já falei disto). É estúpido, eu sei. Dado que nunca sabemos quando morremos, a verdade é que pode faltar sempre pouco para morrer. Ou: é sempre infinita a distância entre existir-me vivo e não me existir morto. Não há consolo em nenhum destes pensamentos antagónicos. 47 anos. É um facto. Mas, pensando bem, não é mais do que isso: um facto completamente estúpido e vulgar.

Separado. Uma oportunidade para a esperança florir de novo.

Um filho. O amor absoluto. E, ao mesmo tempo, as músicas, os amigos, os colegas, as raparigas, tudo o que alonga e estreita a passagem para uma proximidade comigo. Para depois voltar?

Sem namoradas. Gosto mesmo desta palavra. E assim é que vai ser: não vou ter amantes, nem companheiras, nem apaixonadas, mas sim uma namorada: eternamente bela e irresistível!

Seja o que for que o futuro me reserve, desejaria imenso (como diz Fernando Nobre nas suas "Viagens contra a Indiferença"), desejaria imenso que a minha vida constituísse uma gota de orvalho na terra seca pelo egoísmo ou pela dor dos seres com quem me cruzo e me relaciono. Simplesmente isso.

sábado, fevereiro 12, 2005

"Mais vale ser a cabeça de um ratinho do que o rabo de um elefante"

Leio esta frase e percebo logo que este é um dos poucos lemas que eu preciso mesmo fazer meu.
Que eu não sou elefante, nem nunca serei, é óbvio.
Há é uma questão que se (me) põe e que é o desafio explícito da frase (e do contexto onde ela aparece): conseguirei alguma vez ser a cabeça do ratinho?

A frase surge no livro "Viagens contra a Indiferença" (os direitos de autor revertem para a AMI) do seu fundador, Fernando Nobre, na página 78 e pertence a um "cirurgião Alexis Kostritski, peruano de origem russa". Poderei acrescentar que é um livro de leitura essencial?

sexta-feira, fevereiro 11, 2005

Rostos

Hoje gostaria de falar de rostos.
Não serei capaz de dizer muito mais e melhor do que Eduardo Prado Coelho no Público de hoje(*). Haverá uma nesga deixada livre?
Primeiro explico-me: um corpo belo atrai-me o olhar sem dúvida, mas o que me deixa fascinado, escravizado mesmo (não estou a exagerar) é o rosto.
Fixo-me nos olhos e na boca, depois no cabelo, no nariz, nas orelhas, na pele, nos pêlos. Mas volto sempre aos olhos e à boca. Porque aí está um caleidoscópio de promessas de uma plenitude feita de beleza e de aventura.
O facto de eu saber, embora não veja, que há muito aqui de ilusão, que a pessoa por detrás daquele rosto ao qual me encontro para sempre ligado sofre, é mesquinha, tem medo e o medo torna-a mais pequena do que ela é e promete ser, tudo isso apenas torna toda a minha contemplação mais fascinada!

(*) Já não está online. Com a devida vénia copio a parte do texto a que aqui me refiro:
"Que é um rosto? É algo em que se concentra o que há de mais íntimo e subtil de um corpo - mas, sobretudo, de um ser. No rosto, desenham-se sons inexprimíveis, vozes murmuradas, coros que são florestas. Existem elementos passivos, como o nariz e as orelhas, e factores activos, como a boca e os olhos. É no plano dos factores activos que encontramos uma escrita quase invisível, uma proliferação de sinais: um simples arquear da sobrancelha e há uma altivez que se ergue; uns olhos que se semicerram e há uma tentativa de compreensão; um olhar que se abre, atónito, e sente-se que o espanto rasga o rosto.
E a boca? Não há nela o mesmo encostar-se à espiritualidade, porque é feita de lábios e de uma língua que se esconde. Quando a língua se mostra, entramos no domínio da provocação, do insulto, da delinquência facial. Mas os lábios exprimem a ternura ou avaliam a capacidade de devoração. E por eles passa esse elemento inqualificável, esse sopro de vida, que é a voz. E por ele se respira até ao limiar da morte, que é o último suspiro.
Contudo, um rosto é acima de tudo um olhar de infinito onde penetramos com uma suavidade nupcial. Um infinito que passa por uma ruga, uma crispação, uma cintilação. Por uma física do infinito. Como é, maior do que todas, no seu rolar de absolutos divinos, a música de Bach."(Eduardo Prado Coelho)

domingo, fevereiro 06, 2005

Fragmentos

A chuva molha a alma com a tinta da solidão.

Sou folha amarrotada que
o vento deixou cair
no lado abandonado do cais.

O beijo tem fome de riso.

Na face fria da manhã de Inverno
O brilho de neve dos teus olhos.

A felicidade não é ser-se feliz, é conseguir sonhar activamente que se vai ser feliz.

quarta-feira, fevereiro 02, 2005

47 anos

O tempo que tens à tua frente é pouco? Pouco para quê? Ou pior: é/está vazio?
Não tenho respostas. Ao fim de 47 anos é obra.