quarta-feira, junho 30, 2021

O que tem de mal o coordenador da Task Force do Plano de vacinação contra a COVID-19 em Portugal aparecer de camuflado militar em público?

 

(foto de Rui Gaudêncio)

O camuflado, ou qualquer outra farda militar, encerra uma carga simbólica poderosíssima de respeito pelas regras, de lealdade inquebrantável perante o inimigo (valor muito importante num país que esteve em guerra até ainda não há muito tempo), de verticalidade e de incorruptibilidade face à sociedade civil. Claro que tudo isto é uma fantasia, como sabemos pelos casos na instituição militar, sejam de corrupção, sejam de desrespeito pela vida, que têm vindo a lume na imprensa.

No entanto, isso não impede que, no mundo ocidental, muita gente anseie por um regime militar; ou, pelo menos, que deseje ser governada por militares. Aliás, nos mais variados países desenvolvidos, os jovens que consideram essencial viver numa democracia estão a reduzir-se a uma significativa minoria. Veja-se um retrato absolutamente assustador das atitudes da população face à ideia de democracia em:

Foa, R. S., & Mounk, Y. (2017). The Signs of Deconsolidation. Journal of Democracy, (1), 5-16.

Vemos bem a que é que esse desejo por militares no governo nos leva no presente (Brasil e Birmânia são dois exemplos devastadores) e no passado, tanto no recente (Chile e Grécia), como no mais longínquo. Mas a evidência não interessa às pessoas. O mito e o símbolo são mais fortes.

O que é aberrante é ver políticos e democratas de esquerda a alimentarem, de forma suicida, este mito perigosíssimo para a democracia… democracia, aliás, que é o que os sustenta a eles próprios.

Quando os políticos passam a mensagem de que fracassaram miseravelmente, e de que têm de ir buscar alguém fora dos quadros profissionais competentes do atual regime (a uma instituição que, pela natureza muito especial das funções a que é habitualmente chamada a exercer, não é intrinsecamente democrática) para resolver um problema, aí não auguro nada de bom para esta democracia.

Por muito excelente pessoa, político e profissional que seja o sr. vice-almirante Gouveia e Melo.

quinta-feira, junho 17, 2021

Onde estão as crianças?

 
(Foto de Basileia, de Raquel Varela)

Em Portugal, o planeamento urbanístico não atribui direito de cidadania às crianças para poderem habitar os espaços públicos, elas com os companheiros ou também juntamente com os adultos. Assim, o planeamento urbano e a respetiva construção raramente contemplam espaços comuns para as crianças conviverem e brincarem confortavelmente e em segurança.

Há, evidentemente, algumas exceções muito esporádicas, principalmente nas urbanizações de luxo, mas mesmo assim só em algumas. E obviamente que não estou a falar de alguns "cercados" apelidados de "parques infantis" que só pelas cores usadas se distinguem de espaços idênticos construídos para cães (estes normalmente até têm mais espaço para correr e saltar).

Ou seja, as crianças em Portugal não são vistas como sujeitos dignos de habitarem a polis com os mesmos direitos dos adultos. Eu, aliás, reduziria a frase anterior para: as crianças não são para serem vistas, ponto final! Que fiquem, pois, confinadas nas escolas e nas casas (há muitos anos que elas andam em confinamento, não foi preciso aparecer a Covid-19)!

Mas não só as crianças mais crescidas. Quem já teve bebés e os quis passear com um carrinho sabe bem a dificuldade que é fazê-lo com comodidade e segurança. É que a rua parece pertencer, acima de tudo, ao carro, à mota e ao camião.

A ideia de cidade como lugar onde se forma e convive uma comunidade é algo que está muito ausente dos planificadores urbanísticos (gente que parece não ter uma centelha de alegria e de afeto pelas pessoas, vendo apenas cifrões à sua volta).

Assim, caminhamos pelas ruas e, pergunto, quando foi a última vez que vimos uma criança?

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Nota: A propósito deste mesmo assunto, escrevi o poema Perdemos as crianças.


quinta-feira, junho 10, 2021

Como @s alun@s ficam fortemente motivados para aprender

 


(...) A criança só pode aprender se primeiro sentir e o sentir refere-se a tudo o que é actividade emocional, jogo, pintura ou canto. A emoção está na base de toda a aprendizagem; a criança aprende quando o seu interesse é suscitado afectivamente ou sentimentalmente pelos problemas (...)

Cada matéria tem a sua linguagem própria e o uso judicioso dos símbolos exige, em regra, uma fase preparatória de iniciação, com carácter lúdico. [Mesmo com adultos, acrescento eu!]

João dos Santos (1991). Ensaios sobre Educação - I - A Criança quem é?. Lisboa: Livros Horizonte. p. 24 e 27

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Dos meus anos de professor, o que eu concluí é que os alunos aprendem entusiasticamente as matérias mais exigentes se, nas aulas, ocorrerem pelo menos estas três condições:

  • O professor mostra na aula, pelo seu comportamento e pelas atividades que planeou para aqueles alunos específicos, que sente que a matéria que ensina é absolutamente apaixonante (e até é, mesmo na minha disciplina que era a Matemática do 3º ciclo e secundário; o professor só precisa diariamente de tempo para o descobrir, e redescobrir, ano após ano – tempo esse que lhe foi completamente roubado desde o governo PS/Sócrates).
  • O aluno gosta da matéria ensinada porque ela lhe diz qualquer coisa e porque (muito importante!) o desafia pessoalmente para algo que ele prevê não só que o vai divertir, mas também fazê-lo sentir-se melhor, quer dizer, mais autónomo, mais competente e mais conectado não só com a matéria que está a aprender, mas também com o mundo em geral. Mais uma vez, para conseguir isto, o professor precisa de tempo (que lhe tiraram).
  • O aluno sente que o professor gosta dele genuinamente, acredita nele e admira-o, seja nos seus esforços, seja nas suas dúvidas e perguntas, seja na sua evolução, seja nas suas realizações (todos estes aspetos são importantes).

Satisfeitas estas três condições, os alunos, todos os alunos, adoram as aulas por mais exigentes que sejam, todos estudam e, felizmente, a maioria adquire o gosto de o fazer.

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Já agora, sem o professor precisar de mandar trabalhos para casa. Por duas razões. A primeira é que, na escola onde eu estava, uma grande parte dos alunos não os fazia. Resultado? Corrigi-los na aula era uma maçada para os que o tinham feito e uma maçada para os que não o tinham feito, ou seja, uma perda de tempo que, sem o tpc a atravancar, eu ocupava de forma muito, mas mesmo muito mais útil. A segunda razão é que os miúdos iam tão carregados de trabalhos para casa que nem tempo lhes ficava para brincarem. Assim, preferi apostar em desenvolver neles o gosto pela matemática porque isso os fazia estudar a matéria com muito mais interesse e empenho do que a técnica dos trabalhos de casa.

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Por outras palavras, o que eu quero dizer, no fundo, é que, nestas discussões sobre educação, se centra habitualmente a atenção na parte cognitiva da aprendizagem, esquecendo aquela que é a verdadeiramente determinante, aquela que decide de tudo, que é a afetiva.

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Claro que é muito difícil plasmar num texto curto toda uma experiência de anos e de aulas.

Saliento que não defendo fazer da aula um lugar de brincadeira (no 3º ciclo e secundário, pois no 1º ciclo, por exemplo, a situação esta questão tem de ser abordada de forma radicalmente diferente). Mas, no entanto, acho que o jogo (este entendido no sentido lato do termo, não de jogos concretos; não, pelo menos no 3º ciclo e secundário de Matemática, que é a minha experiência; penso que será diferente nos 1º e 2º ciclos) é uma das múltiplas componentes de uma aula bem-sucedida, disso não tenho dúvidas nenhumas. Esclareço que falo de bem-sucedida a incluir o sucesso nos exames nacionais (avaliação independente, portanto, do professor em questão).

Dou um exemplo específico. Ao iniciar a matéria de Simetria no 3º ciclo, eu punha o seguinte desafio, para ser resolvido individualmente e em pequenos grupos: “Que palavras se podem construir de modo a terem uma simetria vertical?” Um exemplo de resposta é “ovo”, que não só tem um eixo de simetria vertical a meio da palavra, como ela é simétrica de si própria.

Com este desafio (que não consumia mais do que uns 15 minutos de aula), os alunos ficavam a perceber muitíssimo melhor o conceito de simetria, cuja formalização eu fazia a seguir. Escolhi este exemplo porque, na minha vida de professor, sempre foi a atividade mais espetacular de todas: não havia aluno nenhum, mas mesmo nenhum, que não se interessasse e que não se envolvesse (repare-se, Matemática e Português, os terrores de muitos alunos).

Além disso, eu dizia-lhes que havia uma maneira simples de encontrar as respostas. E, aqui, eu estimulava-os a abordarem este desafio de uma forma inteligente, ensinando-os a resolver problemas. Nota: tratava-se de descobrir primeiro as letras simétricas e, depois, construir palavras com elas - muito mais simples do que andar à procura das palavras em primeiro lugar.

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Voltando à minha ideia principal. Com António Damásio («Biologicamente, houve uma sequência: de seres simples que nem sequer tinham emoções a seres mais complexos em que aparecem as emoções e, depois, seres em que aparece a possibilidade dos factos e da razão. Mas não é possível ter seres que têm unicamente razão sem terem um aspecto subjacente, que é o dos afectos.») pude ver confirmada pela ciência uma ideia que já tinha sido desenvolvida anteriormente por outros pensadores: é que a emoção vem primeiro e a consciência vem depois. Quase sempre e, principalmente, nas crianças. Porquê?

Porque o seu cérebro está em formação até cerca dos 25 anos («It is well established that the brain undergoes a “rewiring” process that is not complete until approximately 25 years of age. (...) The fact that brain development is not complete until near the age of 25 years refers specifically to the development of the prefrontal cortex.»*)

Essa formação começa com as estruturas mais primitivas, ou seja, as que estão mais ligadas às emoções. Principalmente, as que são responsáveis pelas relações sociais porque estas são fundamentais para a sobrevivência da criança nos seus primeiros tempos de vida. Portanto, tudo começa no relacionamento social. O resto vem depois, sobre essas emoções chamemos-lhes sociais.

Assim, eu acredito que o princípio de uma educação (que inclui a transmissão exigente e rigorosa de conhecimentos) está de facto na relação social afetiva com o professor. Mais uma vez, afeto entendido de uma forma lata, isto é, não de apenas simpatizar com o professor só porque “ele é um tipo fixe”. Embora, também mais uma vez, esta faceta seja uma das componentes importantes, porque é uma das bases para uma relação de confiança mútua, permitindo que o aluno esteja mais aberto e pronto a aceitar e a envolver-se em todas as propostas (conhecimentos e o resto de que falei no comentário que fiz anteriormente) que o professor trouxer para a aula.

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Antes de terminar, gostaria ainda de acentuar que alguns mal-entendidos, que surgem nas discussões sobre educação, nascem do facto de não se especificar a que níveis de ensino se referem os argumentos trocados. Explico-me melhor: 

Há uma grande diferença entre o nível universitário (onde, em princípio, o aluno está a estudar porque decidiu livremente que quer aprender mais sobre a área de conhecimento que o atrai) e os outros níveis de ensino em que ele está lá obrigado, não teve escolha ou teve pouca (e um alerta: genericamente, o ser humano não reage bem quando o obrigam de fora a fazer seja o que for… Em Psicologia, isto tem um nome: reatância psicológica).

Há uma diferença abissal entre o 1º ciclo e o secundário. Ou seja, aquilo que é sumamente infantil e regressivo (no sentido psicanalítico do termo) fazer com os jovens deste último nível de ensino da escolaridade obrigatória pode ser, no 1º ciclo, a forma mais adequada de induzir nas crianças o gosto pelo trabalho e pelo conhecimento.

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* Arain et al (2013). Maturation of the adolescent brain. Neuropsychiatric Disease and Treatment 2013:9, 449–461