Quem tenha estado atento ao discurso do primeiro-ministro
ontem, e não deixe que considerações pessoais interfiram no seu julgamento,
ter-se-á apercebido que nas cerca de 2200 palavras que o constituem não se
encontra uma única ideia que confira um sentido à vida actual dos portugueses.
Penso que se pode tirar quase tudo às pessoas, mas há duas
coisas que não: a dignidade e o sonho.
Quanto à dignidade, os nossos governantes, banqueiros e
muitos patrões vivem como se ela não existisse, nem para si próprios nem para
os outros: é uma deficiência, uma incapacidade congénita, pelo que é difícil
culpabilizá-los por isso. Adiante.
No discurso do primeiro-ministro evidencia-se a completa
ausência de um sonho, de um ideal para Portugal. É grave e explica a violência
com que esse discurso está a ser recebido por todo o país. É que o que move as
pessoas não é o dinheiro (e muito menos o dinheiro dos outros) mas sim o sonho.
Já Sebastião da Gama escrevia há muitos anos, com a imensa sabedoria de um
coração puro, que “Pelo sonho é que vamos”. Roubem às pessoas os seus sonhos
individuais e colectivos e o resultado será, no mínimo, imprevisível porque as
pessoas se sentirão espoliadas no mais fundo de si.
Este discurso, em vez de motivar os portugueses para um
esforço colectivo, revela várias coisas que incitam antes à revolta das pessoas bem
formadas.
Primeiro, revela que o ideal indiscutível proposto por Abraham
Lincoln, “que o governo do povo, pelo povo e para o povo jamais desapareça da
face da terra”, desapareceu até do horizonte do actual governo. Hoje, a
preocupação revelada pelo primeiro-ministro neste discurso é de apenas obedecer
às ordens do poder financeiro, interno (beneficiando empresas e bancos) e
externo (a famigerada troika), assumindo-se
assim como um mero testa-de-ferro de outros poderes que não o do povo que o elegeu.
Segundo, para o primeiro-ministro os pobres não existem. Só
assim se explica que o sofrimento e a morte de tantos pobres (lembre-se por
exemplo o aumento de mortes por gripe sem nenhuma razão por detrás que não o
ter-se impedido o acesso à saúde aos mais desprotegidos) possa não
constituir um problema para ele e nem sequer tenha sido considerado: no discurso,
referem-se apenas aqueles que trabalham e aqueles a quem o seu trabalho foi
roubado, mais ninguém (os pensionistas e reformados são referidos de passagem
apenas para lhes lembrar o que lhes continuará a ser tirado).
Gandhi dizia que o critério para determinar se uma lei era
boa ou má consistia em perguntar: esta lei beneficia os mais pobres de entre os
pobres? Se sim, a lei era boa; se não, era má.
Para o primeiro-ministro os pobres não são de todo a sua
prioridade. O culto assumido é apenas o do dinheiro.
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