Normalmente, vamos ao encontro de um novo livro sem a leveza
da inocência. Ou seja, carregamos connosco toda a cultura que, implícita e
explicitamente, fomos absorvendo ao longo da nossa vida. Isso é bom ou mau?
Como tudo na vida, a resposta é: depende. Depende da densidade dessa carga e
depende das situações.
Há livros que nos incitam a convocar tudo o que já lemos e o
que aprendemos com todas as nossas leituras anteriores. Conseguem-no de duas
maneiras.
A pior e mais desgraçada ocorre quando o escritor se apoia
na técnica para (não há outras palavras) produzir um objeto vendável. Nós, aqueles
que amamos a literatura de uma forma discreta mas absoluta, sentimo-nos então
asperamente constrangidos (no sentido literal da perda de liberdade, que é o
objetivo de todo o embuste, a fim de fazermos o que o impostor deseja) ao nos
apercebermos que estamos diante, não de um livro, mas de um simples truque que,
acima de tudo, desrespeita a nobre arte da escrita.
Mas há outra forma de o escritor convocar as nossas leituras
anteriores, agora de uma forma bem mais amável. Quando o livro, pela sua arte,
faz brilhar intensamente tudo o que já lemos, fazendo com que a não-inocência
seja um trunfo fundamental. Lembro-me, por exemplo, de Camões, de José Saramago
(principalmente, esse irradiante “O Ano da Morte de Ricardo Reis”) ou de Enrique
Vila-Matas.
Sei que estes livros existem e estou sempre aberto para os
encontrar mas, por regra, tento partir para cada livro com a maior inocência
possível. Apenas com o objetivo, é certo que sempre falhado, mas também sempre
parcialmente conseguido, de não consumir tempo e alegria a dar atenção ao já
conhecido e envelhecido.
Como realizar esta intenção? Apesar da quase impossibilidade
de esquecermos o que aprendemos (entendendo isto num sentido lato, não falo de
tirar um curso de literatura), entro sempre num novo livro com a abertura e
predisposição ao prazer de encontrar dissemelhanças, originalidades e desafios.
Isto talvez não seja tão difícil de conseguir, até porque hoje em dia valoriza-se
a voz única, especial e idiossincrática dos autores (ou será que não, dada a
pressão do mercado?). Ajuda-me, no entanto, saber que sobre cada obra literária
não existe uma interpretação única: isso confere-me uma liberdade suficiente
para o florir de um olhar limpo, curioso e interessado, nesse encontro com o
livro.
Finalmente, todo este esforço serve para quê,
perguntar-me-ão. Muito simples. Primeiro, evidentemente, para fazer da leitura
uma arte tão nobre como a da escrita. Depois para, ficando livre do desgaste
das vivências medíocres, potenciar ao máximo a possibilidade de uma experiência
sublime na leitura da obra literária.