domingo, junho 25, 2017

Livre de lastros

Normalmente, vamos ao encontro de um novo livro sem a leveza da inocência. Ou seja, carregamos connosco toda a cultura que, implícita e explicitamente, fomos absorvendo ao longo da nossa vida. Isso é bom ou mau? Como tudo na vida, a resposta é: depende. Depende da densidade dessa carga e depende das situações.

Há livros que nos incitam a convocar tudo o que já lemos e o que aprendemos com todas as nossas leituras anteriores. Conseguem-no de duas maneiras.

A pior e mais desgraçada ocorre quando o escritor se apoia na técnica para (não há outras palavras) produzir um objeto vendável. Nós, aqueles que amamos a literatura de uma forma discreta mas absoluta, sentimo-nos então asperamente constrangidos (no sentido literal da perda de liberdade, que é o objetivo de todo o embuste, a fim de fazermos o que o impostor deseja) ao nos apercebermos que estamos diante, não de um livro, mas de um simples truque que, acima de tudo, desrespeita a nobre arte da escrita.

Mas há outra forma de o escritor convocar as nossas leituras anteriores, agora de uma forma bem mais amável. Quando o livro, pela sua arte, faz brilhar intensamente tudo o que já lemos, fazendo com que a não-inocência seja um trunfo fundamental. Lembro-me, por exemplo, de Camões, de José Saramago (principalmente, esse irradiante “O Ano da Morte de Ricardo Reis”) ou de Enrique Vila-Matas.

Sei que estes livros existem e estou sempre aberto para os encontrar mas, por regra, tento partir para cada livro com a maior inocência possível. Apenas com o objetivo, é certo que sempre falhado, mas também sempre parcialmente conseguido, de não consumir tempo e alegria a dar atenção ao já conhecido e envelhecido.

Como realizar esta intenção? Apesar da quase impossibilidade de esquecermos o que aprendemos (entendendo isto num sentido lato, não falo de tirar um curso de literatura), entro sempre num novo livro com a abertura e predisposição ao prazer de encontrar dissemelhanças, originalidades e desafios. Isto talvez não seja tão difícil de conseguir, até porque hoje em dia valoriza-se a voz única, especial e idiossincrática dos autores (ou será que não, dada a pressão do mercado?). Ajuda-me, no entanto, saber que sobre cada obra literária não existe uma interpretação única: isso confere-me uma liberdade suficiente para o florir de um olhar limpo, curioso e interessado, nesse encontro com o livro.


Finalmente, todo este esforço serve para quê, perguntar-me-ão. Muito simples. Primeiro, evidentemente, para fazer da leitura uma arte tão nobre como a da escrita. Depois para, ficando livre do desgaste das vivências medíocres, potenciar ao máximo a possibilidade de uma experiência sublime na leitura da obra literária.

quarta-feira, junho 21, 2017

Encontro os livros

Adoro ler.
Digo isto e oiço de imediato vozes antigas que saltam:
“O menino não adora nada ler. Adorar só a Deus.”
Pois. Mas e se Deus não me fala e se remete a um silêncio total?

A questão é que me lembro de sempre desejar alcançar a sabedoria. Procurei Deus, mas não o encontrei. Também não tive a sorte de encontrar um mestre que me guiasse nos caminhos da sabedoria. Na realidade, até tenho dúvidas sobre aquela frase da tradição oriental: “Quando o discípulo está pronto, o mestre aparece.” Talvez eu nunca tenha estado pronto, é uma possibilidade.

Ah, mas encontrei os livros! Quando li Oscar Wilde, apercebi-me da chuva de revelações que a palavra escrita pode trazer. Quando li Antoine de Saint-Éxupery, apercebi-me das muitas camadas por que é constituído o texto escrito. Quando li Vergílio Ferreira, apercebi-me de como a nossa vida interior se vai enriquecendo extraordinariamente com cada livro lido. E, quando li Ray Bradbury, decidi que a minha vida seria dedicada a atingir aquela sabedoria que parecia estar por detrás de todas as histórias que ele escrevia.

Era um projeto perfeitamente ao meu alcance. Seria fácil, bastava-me, para isso, entrar em contacto com pessoas mais sábias e mais inteligentes que eu. O problema que me surgiu não foi de todo elas serem poucas, claro. O problema foi essas pessoas provavelmente não terem grande interesse em estarem em contacto comigo, dado que tenho de admitir que elas, tal como eu, desejam estar com pessoas mais sábias e inteligentes do que elas próprias.

É aqui que surgem os livros. Com estes posso estar em contacto íntimo com as pessoas mais sábias e inteligentes do planeta, independentemente de onde elas estiverem e do que estiverem a fazer. Na verdade, há ainda mais, posso “ouvi-las” as vezes que quiser, durante todo o tempo que eu precisar, posso pará-las numa frase e ficar com essa ideia, tentar percebê-la com tempo, dialogar com ela, criar novos pensamentos, novas revelações sobre mim próprio e sobre o mundo. Sentindo sempre uma satisfação profunda nesse processo.

Atingi a sabedoria, como desejava quando era miúdo? Claro que não, hoje sei que a sabedoria não é um ponto de chegada, não é algo que seja possível possuir como quem tem um carro ou uma conta no banco. A sabedoria é um caminho. E esse caminho abre-se à minha frente, com as suas múltiplas possibilidades, através dos livros. Com estes, vou caminhando, fazendo o meu próprio caminho («Caminante, no hay camino, / se hace camino al andar.», diz Antonio Machado). Acima de tudo, com prazer e sem precisar de o fazer sozinho (embora possa eventualmente estar só).