Hoje acordei com esta foto na minha cabeça. Ela representa a primeira rapariga negra - Dorothy Counts – a frequentar uma escola só para brancos nos Estados Unidos, em 1957.
À sua volta, as pessoas gozam com ela, miúdos e graúdos. Sei que é real, mas há algo em mim que resiste a acreditar. Esta foto evoca aquelas gravuras antigas que retratam personagens grotescas, deformadas pelos mais baixos instintos. Sinto um aperto no peito, acentuado pelo contraste entre Dorothy, uma adolescente de 15 anos, e quem a rodeia. A beleza dela emudece-me.
E ela está tão só. A cadeira vazia ao lado dela enche esta foto da sua solidão. No meio do barulho, dos gritos e das gargalhadas, a solidão dela é um soco no peito e deixa-me sem respiração.
Porém, eu vejo aqui uma rainha. Por exemplo, rainha na forma como ocupa o espaço: ela não está encolhida no seu lugar, os ombros estão direitos, os braços afastados do corpo e saem fora do seu perímetro pessoal, mas não tanto que evidencie arrogância. Não, aquele é o seu lugar e ela ocupa-o com a naturalidade possível dentro daquelas circunstâncias.
A cabeça não está levantada e, no entanto, não há submissão na sua postura. A sua boca expressa a determinação com que está ali. E o esforço para fazer frente àquela muralha de agressões à sua volta. O olhar é atento, de quem sabe que está em terreno hostil, mas não aterrorizado. E, no entanto, ela teria o direito de se sentir aterrorizada, pois não há ali ninguém a defendê-la. Eu sei que não vai haver.
Veste-se com gosto, mas discretamente. Ela sabe que é uma rainha, mas não precisa de o demonstrar. Reparo no tema do seu vestido que, no preto e branco desta foto, é semelhante ao da camisa de um dos que zombam dela. Este contraste, aqui evidenciado pela semelhança das roupas, demonstra como uma pessoa pode conferir uma infinita dignidade ao que veste.
Gosto também da fragilidade revelada pelos seus óculos pendurados ao pescoço. Fragilidade essa que me remete para as imagens dos judeus na Alemanha nazi, com os seus óculos redondos sem aros. Que me recorda a sala que visitei em Auschwitz, cheia de óculos das vítimas do extermínio. Tão deslocados, tão abandonados.
E o fundo branco do laço, testemunho de um gosto simples e claro. Como se tratasse de um pedido de paz a alvorecer no meio da escuridão.
Na procura de um alívio à dor que esta foto me produz, reparo ainda que há duas mulheres atrás dela, na 3ª fila, que estão a olhar para o lado, como se não quisessem participar e, ao mesmo tempo, mostrarem que são críticas quanto ao que se está a passar. Eu sei que a fotografia “congela” um momento, não mais do que um momento, mas eu gostaria de acreditar que aquelas mulheres brancas sentem-se mesmo oprimidas por aquele clima. Que elas sabem que o ódio àquela jovem negra tem também laivos de um ódio dos homens a todas as mulheres, brancas ou não. E, por isso, não o querem alimentar.
Gostaria de acreditar, mas é difícil. Sabemos que, naqueles quatro dias em que Dorothy aguentou todas as humilhações e violências, mulheres com responsabilidades incitaram os alunos a expulsarem Dorothy, a cuspirem-lhe, etc.
Insultos, cuspidelas, pedradas… Olho para esta foto (e para a que ganhou a World Press Photo of the Year desse ano de 1957, da autoria de Douglas Martin, e que junto abaixo) e tento imaginar que horrores vivem emboscados no espírito destas pessoas que se riem e troçam desta criança.
Não consigo. Sei que tenho a mesma arquitetura básica que eles. Sei que existirá em mim, como para todo o ser humano, o potencial para inomináveis violências. Sei que há sempre quem queira aproveitar-se deste potencial e o manipula para benefício próprio. Por isso, mais do que estes jovens agressores, sei que me horrorizam os adultos (pais, professores, autoridades) que estiveram por detrás deles, e os formaram e os incitaram.
Mas não sei muito mais.
Sem comentários:
Enviar um comentário