A leitura que fiz deste livro passou por três momentos
distintos:
1º, vai até ¾ do livro. Foi-me difícil manter a leitura
porque não senti haver alegria, mas sim o peso constante da ameaça dos soldados
aparecerem para executarem as atrocidades que todos os soldados fazem em
guerra.
Aliás, fui logo ao fim do livro para saber como acabava, com
a esperança de que acabasse em bem, para eu poder ler o livro mais
descansadamente.
Entretanto, nem a serenidade de Ulume me permitiu ter prazer
na leitura, prazer esse que esteve ausente nesta parte.
A verdade é que, nos livros, eu não suporto a violência.
Além disso, preciso de um pouco de fantasia e, aqui, o que lia era a realidade.
Foi neste 1º momento que me apercebi que Pepetela, com esta
história, mostra como a guerra é encarada do ponto de vista dos civis. Mostra
como a guerra lhes é incompreensível, tanto ao nível de acontecimento geral
como ao nível mais individual das relações com e entre soldados. Esta história
exemplifica uma convicção minha de que a guerra raramente é desejada pelo povo
que a abomina: são os políticos e os militares que a desejam, a impõem e a
levam por diante (aliás, muitas vezes beneficiando com ela).
2º, corresponde à parte final, a partir do retorno de
Munakazi. Foi a parte mais bonita e a mais profunda (a guerra não deixa
aprofundar nada do que é humano, obriga-nos a ficar pela superficialidade da
sobrevivência, que temos em comum com os outros animais) do livro e a que me
deu mais prazer ler. Também contribuiu para isso o abrir-se a promessa de paz
nesta parte.
3º, depois da leitura finalizada, durante os dias seguintes
e até hoje. Ficou-me viva a figura de Ulume, a sua simplicidade, a sua
sabedoria e a sua resistência à força bruta que vem com as armas.
Armas que são capazes de ganhar todas as batalhas, mas nunca
a guerra. Nesta ninguém ganha verdadeiramente e todos perdem – nem que seja só
a dignidade ou, os mais afortunados, só as ilusões.
Todo o ser de Ulume me envolveu e impregnou o meu espírito
nos dias seguintes à leitura do livro. A ameaça da presença/ausência dos
soldados e da guerra não desapareceu, mas saiu da boca de cena da minha memória
para ficar apenas como seu pano de fundo.
Uma interrogação se foi corporizando no meu espírito à
medida que passavam os dias: quem seria o cágado, o que quereria Pepetela
simbolizar com ele ao ponto de lhe dar uma centralidade com o título que, no romance, ele não tem?
Aos poucos foi-se definindo uma série de outras
interrogações-respostas.
O cágado poderia simbolizar-nos a todos nós, leitores deste
seu romance?
Na verdade, não vivemos nós nas cavernas seguras e
protegidas das nossas vidas, das quais saímos pouco e sem prestar muita atenção
à vida verdadeira que se desenrola à nossa volta?
Não fazemos uma vida sempre mais ou menos igual? “Comendo” o
que nos é oferecido (aqui pela natureza e por Ulume) e só parando para sair dos
nossos mundozinhos privados quando a aflição dos outros (Ulume) trespassa o
nosso egoísmo? E, mesmo assim, apenas para lhe dar a essa aflição uma atenção
momentânea?
Poderei dizer, então, que o cágado é a forma de Pepetela nos
alertar para a vida que nos passa ao lado desapercebida? Aquela que poderia ser
vivida em plenitude?
Claro, com as suas derrotas mas também com as suas vitórias;
com as suas perdas mas também com os seus ganhos; com os seus sofrimentos mas
também com as suas alegrias. E, no entanto, esta não será talvez a vida
autêntica?
Em suma, o que Pepetela nos confrontaria seria com a
questão: poderemos deixar de ser o cágado desta história (acabada) e
tornarmo-nos o Ulume das nossas histórias por/que podemos construir?
Adenda – Citações a assinalar:
p. 140, li. 6 – «Os antigos diziam as palavras eram tudo,
eram força. Pode ser, no passado. Quando se usavam as palavras exactamente para
se dizer o que se pensava e não como armas para confundir os outros. (…)»
p. 151, li. 1-2 – Muari: «(…) Se esquecer não podemos, nunca
pudemos, será tão difícil perdoar a quem tanto sofreu?»
A refletir: Muari desempenha nesta história um papel que
requer uma reflexão mais aprofundada, talvez uma releitura do livro. Papel de
submissão, de bondade, de aceitação e de compaixão? Ou de tudo ao mesmo tempo,
a revelar uma sabedoria que acompanha a do marido, embora sendo diferente da
dele?
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