quinta-feira, novembro 29, 2018

Leitura(s) de «Parábola do Cágado Velho», de Pepetela (D. Quixote)



A leitura que fiz deste livro passou por três momentos distintos:

1º, vai até ¾ do livro. Foi-me difícil manter a leitura porque não senti haver alegria, mas sim o peso constante da ameaça dos soldados aparecerem para executarem as atrocidades que todos os soldados fazem em guerra.
Aliás, fui logo ao fim do livro para saber como acabava, com a esperança de que acabasse em bem, para eu poder ler o livro mais descansadamente.
Entretanto, nem a serenidade de Ulume me permitiu ter prazer na leitura, prazer esse que esteve ausente nesta parte.
A verdade é que, nos livros, eu não suporto a violência. Além disso, preciso de um pouco de fantasia e, aqui, o que lia era a realidade.
Foi neste 1º momento que me apercebi que Pepetela, com esta história, mostra como a guerra é encarada do ponto de vista dos civis. Mostra como a guerra lhes é incompreensível, tanto ao nível de acontecimento geral como ao nível mais individual das relações com e entre soldados. Esta história exemplifica uma convicção minha de que a guerra raramente é desejada pelo povo que a abomina: são os políticos e os militares que a desejam, a impõem e a levam por diante (aliás, muitas vezes beneficiando com ela).

2º, corresponde à parte final, a partir do retorno de Munakazi. Foi a parte mais bonita e a mais profunda (a guerra não deixa aprofundar nada do que é humano, obriga-nos a ficar pela superficialidade da sobrevivência, que temos em comum com os outros animais) do livro e a que me deu mais prazer ler. Também contribuiu para isso o abrir-se a promessa de paz nesta parte.

3º, depois da leitura finalizada, durante os dias seguintes e até hoje. Ficou-me viva a figura de Ulume, a sua simplicidade, a sua sabedoria e a sua resistência à força bruta que vem com as armas.
Armas que são capazes de ganhar todas as batalhas, mas nunca a guerra. Nesta ninguém ganha verdadeiramente e todos perdem – nem que seja só a dignidade ou, os mais afortunados, só as ilusões.
Todo o ser de Ulume me envolveu e impregnou o meu espírito nos dias seguintes à leitura do livro. A ameaça da presença/ausência dos soldados e da guerra não desapareceu, mas saiu da boca de cena da minha memória para ficar apenas como seu pano de fundo.

Uma interrogação se foi corporizando no meu espírito à medida que passavam os dias: quem seria o cágado, o que quereria Pepetela simbolizar com ele ao ponto de lhe dar uma centralidade com o título que, no romance, ele não tem?
Aos poucos foi-se definindo uma série de outras interrogações-respostas.
O cágado poderia simbolizar-nos a todos nós, leitores deste seu romance?
Na verdade, não vivemos nós nas cavernas seguras e protegidas das nossas vidas, das quais saímos pouco e sem prestar muita atenção à vida verdadeira que se desenrola à nossa volta?
Não fazemos uma vida sempre mais ou menos igual? “Comendo” o que nos é oferecido (aqui pela natureza e por Ulume) e só parando para sair dos nossos mundozinhos privados quando a aflição dos outros (Ulume) trespassa o nosso egoísmo? E, mesmo assim, apenas para lhe dar a essa aflição uma atenção momentânea?
Poderei dizer, então, que o cágado é a forma de Pepetela nos alertar para a vida que nos passa ao lado desapercebida? Aquela que poderia ser vivida em plenitude?
Claro, com as suas derrotas mas também com as suas vitórias; com as suas perdas mas também com os seus ganhos; com os seus sofrimentos mas também com as suas alegrias. E, no entanto, esta não será talvez a vida autêntica?
Em suma, o que Pepetela nos confrontaria seria com a questão: poderemos deixar de ser o cágado desta história (acabada) e tornarmo-nos o Ulume das nossas histórias por/que podemos construir?

Adenda – Citações a assinalar:
p. 140, li. 6 – «Os antigos diziam as palavras eram tudo, eram força. Pode ser, no passado. Quando se usavam as palavras exactamente para se dizer o que se pensava e não como armas para confundir os outros. (…)»

p. 151, li. 1-2 – Muari: «(…) Se esquecer não podemos, nunca pudemos, será tão difícil perdoar a quem tanto sofreu?»
A refletir: Muari desempenha nesta história um papel que requer uma reflexão mais aprofundada, talvez uma releitura do livro. Papel de submissão, de bondade, de aceitação e de compaixão? Ou de tudo ao mesmo tempo, a revelar uma sabedoria que acompanha a do marido, embora sendo diferente da dele?

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