Cometemos habitualmente o erro de
acreditar que, no ser humano, as razões antecipam as emoções e as decisões. A maior parte das
vezes, não é verdade, tanto quanto se sabe, hoje em dia. Vergílio Ferreira alertou-nos muitas vezes: «As verdades fundamentais fulguram primeiro e depois é que se disciplinam em razões.» (em Do mundo original, 1979, Lisboa, Livraria Bertrand, p.119)
Portanto, na prática, a maior parte
das pessoas não foi convencida por André Ventura. O discurso deste é que deu uma
voz, uma organização e uma ação a quem estava predisposto a estas ideias ou já estava decidido sobre elas. Ou seja, acreditar em André Ventura não é mérito dele, é apenas
uma consequência das emoções e ideias que as pessoas já tinham. Estas crenças e
emoções já existiam, não tinham era sido publicamente mobilizadas, talvez por
vergonha de opróbrio público.
Mas agora várias circunstâncias
ajudaram a ultrapassar esta barreira.
Primeiro, a disseminação das redes
sociais que levaram à descoberta de que se podia dizer aquelas coisas em
público e ter muita gente a apoiá-las.
Segundo, ter surgido um ativista
político a dizê-las sem ser expulso de um partido do arco do poder (quando, como candidato à Câmara
de Loures, André Ventura fazia parte do PSD de Passos Coelho), nem ser travado
pela Justiça.
Em terceiro lugar, a neutralidade,
o silêncio e o ignorar dos poderosos.
Ficaram assim expostos os sinais
claros de que se poderia dar a emergência daquelas emoções e sentimentos mais retrógrados
e negativos, sem perigo nem vergonha.
Veja-se, aliás, o caso infame de
Ihor Homeniuk que foi o culminar de anos de abusos e torturas a pessoas
inocentes com a complacência e o encorajamento disfarçado do Governo, ignorandoas recomendações que o Mecanismo Nacional de Prevenção da Tortura fazia desde,pelo menos, 2018.
Ou de inúmeros políticos, nacionais
e estrangeiros (em Portugal, Espanha, França, Itália, etc.) que têm vindo a põr
em prática políticas de discriminação contra comunidades ciganas, como se fosse
legal ou ético fazê-lo seja com quem for.
O problema vai-se tornando mais
grave quando um líder começa a catalisar este caldo de emoções a fim de unir as
pessoas em multidões que se sentem suficientemente organizadas para iniciarem
uma ação violenta. O que até agora, mas apenas até agora, não foi o caso em
Portugal.
A um nível individual, quando é que
temos uma resposta violenta? Quando ativamos o sistema neurocomportamental de
regulação de emoções focado na ameaça e na autoproteção. A resposta torna-se ainda
mais violenta se, simultaneamente, se se frustrar o sistema
neurocomportamental focado na busca de recursos e de incentivos.
Para estimular estes processos de
ativação e de frustração nas pessoas, o líder proclama que o mundo é um lugar perigoso, que
está dominado pelo mal, que só ele o conseguirá pôr bom e que, inclusivamente, só ele conseguirá proteger
as pessoas de bem, mesmo que para isso precise do poder total, ou seja, de uma
ditadura.
A um nível grupal, isto piora se estas
pessoas percecionarem que o seu grupo está em conflito com outros grupos. Principalmente,
se favorecerem vias mais agressivas e violentas para conseguirem o que querem, devido
a privilegiarem precisamente a agressividade e a violência, e devido a se
sentirem mais fortes do que os outros grupos.
Note-se, aliás, que se estas
pessoas realmente acreditassem na propaganda que diz que elas não têm poder
para fazer frente aos outros grupos (mensagem passada pelo líder populista),
elas fugiriam, não lutariam.
Como esses outros grupos são na
verdade minoritários e com menos poder, elas sentem-se à vontade para terem
preconceitos contra eles e para apoiarem ações discriminatórias.
Uma outra característica destas pessoas consiste em elas tenderem
a escolher líderes mais autoritários, mais fortes ou mesmo brutos. Porque estes
são vistos como os mais capazes de acelerar a coordenação dentro do grupo, de
forma a este ficar mais rapidamente organizado e capaz que o grupo inimigo.
Por isso, é natural que elas tendam
também a escolher líderes que não respeitem as regras. Regras essas que, no
fundo, elas acham que fizeram o outro grupo ficar mais forte. Daí que é
precisamente o facto de esses líderes serem descaradamente mentirosos,
oportunistas e malcriados que os torna mais atraentes para estas pessoas por
assim se revelarem claramente contra o sistema em relação ao qual elas se
sentem revoltadas e que desejam deitar abaixo.
A sustentar todos estes processos, temos
a tendência da natureza para escolher as vias mais fáceis e mais “económicas”,
isto é, menos consumidoras de energia. Esta tendência leva ao que alguns
investigadores chamam de “preguiça cognitiva” que tem como consequência a
adesão a ideias simples, fáceis e carregadas emocionalmente (que assim, nos
dispensam de refletir). Ideias essas que caracterizam habitualmente as arengas
destes políticos e as notícias falsas. Esta hipótese, a ser verdadeira, é um
pouco desanimadora pois pouco se pode fazer para a contrariar no curto prazo (a
longo prazo, só na escola, ensinando experiencialmente que o prazer e as
vantagens de pensar racionalmente se sobrepõem em larga medida às dificuldades
em fazê-lo).
A acrescentar a tudo isto, muitas destas pessoas já não acreditam nas instituições e desejam uma revolução que permita começar tudo do zero. Essas pessoas, há umas décadas, seriam de esquerda, hoje são de direita. É irresistível pensar que a nossa matriz cultural judaico-cristã tem aqui uma influência extraordinária: a ideia emocionalmente apelativa de um dilúvio que destrua e apague tudo, mas que permita um novo recomeço; acompanhada, claro, da ilusão de que lhe sobreviveremos porque estaremos cada um de nós dentro da Arca de Noé.
Podem-se apresentar várias causas possíveis para a raiva das
pessoas contra as instituições: a desigualdade social que tem vindo a aumentar
de modo ostensivo; a corrupção com a cumplicidade dos grandes poderes; o uso da
força com quem é fraco e as manifestações de fraqueza com quem é poderoso; a
sensação de absoluta impotência face aos poderosos; o sentirem-se remetidas
para uma solidão cada vez maior; e a constatação de que a sua voz não é ouvida
por nenhum decisor com poder.
Peguemos, a título de exemplo, no
caso da desigualdade. Os protestos destas pessoas são sempre contra um
determinado tipo de desigualdade, real ou imaginária, mas não contra onde ela é
maior e causa verdadeiramente o seu mal-estar. Explicando melhor, as pessoas
pegam nessa raiva contra os poderosos (que sabem ser sem esperança, visto que
as instituições que deviam regular o poder falharam) e desviam-na para grupos
minoritários e mais inofensivos.
E aqui, surge um outro problema. Os
conflitos de opiniões são inevitáveis numa democracia e não a põem em perigo,
pelo contrário. Mas quando ficamos convencidos de que o benefício de outro
grupo é um prejuízo para nós, quando não sentimos que estamos todos no mesmo
barco, que há gente que deve ir borda fora (e que podemos fazê-lo sem custos),
que não há qualquer interesse em trabalhar em conjunto para resolver os
problemas, então estamos em território muito perigoso (que pode chegar à guerra
mesmo).
Além disso, um novo fator a ter em
conta, hoje em dia, é o facto de as redes sociais terem um papel
extraordinariamente importante na comunicação, coordenação e afunilamento de
crenças e de esforços em tempo real. O problema é que elas nunca incentivam a
manter as pessoas e as ideias calmas, pois não é isso que lhes faz gerar
tráfego nem dinheiro. Ou seja, elas tendem a fornecer mais combustível para
incendiar as mentes das pessoas.
Portanto, nas redes sociais, temos
um dilema: como é que a nossa sociedade consegue proteger uma maioria
relativamente calma de uma minoria relativamente violenta? Por autorregulação
das próprias redes? Quando o fazem, elas são criticadas por fazerem censura.
Por imposição do poder político? Outra vez críticas de censura. Não se vê uma
saída fácil para a complexidade desta situação.
Porém, pelo menos ao nível do
contacto direto com estas pessoas, o que podemos nós fazer para contrariar
estes movimentos disruptores da nossa democracia, tanto no que se refere à
emergência de ideias, crenças e sentimentos retrógrados e agressivos, como no
que se refere à sua coordenação e à sua posterior transformação em ações
violentas?
A primeira sugestão é claramente começarmos
por ouvir as frustrações destas pessoas. Não só para perceber e validar as suas
emoções, mas também para descobrirmos com que circunstâncias elas se sentem exatamente
revoltadas. E não, não serve absolutamente para nada confrontá-las com
argumentos, ou com julgamentos ou com condenações. Elas sentirão tudo isto como
um ataque pessoal e irão entrincheirar-se mais solidamente nas suas ideias e
nas suas emoções negativas (que serão, por este processo, ainda mais
exacerbadas).
A seguir, tentarmos saber que
benefícios concretos (não os vagos e abstratos para a sociedade em geral, dado
que não são esses que movem verdadeiramente as pessoas a um nível individual) elas
esperam obter por meio de uma mudança de políticas.
Depois, procurarmos encontrar soluções
abrangentes e satisfatórias para todos, tendo o cuidado de, no processo, e sem
tentar enganá-las, esforçarmo-nos por conseguir acender e alimentar a esperança de uma vida melhor
para todas estas pessoas.
Encontradas as soluções mais
inclusivas para a satisfação das necessidades de todos, o passo seguinte é unir e canalizar os esforços das pessoas para pressionar efetivamente os poderes a porem em prática estas
soluções, dando assim a elas benefícios concretos (por exemplo, garantindo uma
melhor distribuição da riqueza a fim de se gerar menos desigualdade).
Finalmente, e não menos importante do que tudo o resto, lutar pela reconciliação, a fim de levar as pessoas a sentirem-se suficientemente seguras para poderem deixar de ser tribais. Nomeadamente, para porem de lado a noção de que a tribo dos outros está contra a minha e a pô-la em perigo .
E podermos passar todos, dentro deste território, a viver em paz e com bem-estar, como uma só comunidade e um só povo.