sábado, fevereiro 20, 2021

Hipótese para a compreensão de algumas pessoas que apoiam partidos e políticos da extrema-direita radical. E uma proposta de abordagem ao problema.

 

(Francisco de Goya - Duelo a Garrotazos)

Cometemos habitualmente o erro de acreditar que, no ser humano, as razões antecipam as emoções e as decisões. A maior parte das vezes, não é verdade, tanto quanto se sabe, hoje em dia. Vergílio Ferreira alertou-nos muitas vezes: «As verdades fundamentais fulguram primeiro e depois é que se disciplinam em razões.» (em Do mundo original, 1979, Lisboa, Livraria Bertrand, p.119)

Portanto, na prática, a maior parte das pessoas não foi convencida por André Ventura. O discurso deste é que deu uma voz, uma organização e uma ação a quem estava predisposto a estas ideias ou já estava decidido sobre elas. Ou seja, acreditar em André Ventura não é mérito dele, é apenas uma consequência das emoções e ideias que as pessoas já tinham. Estas crenças e emoções já existiam, não tinham era sido publicamente mobilizadas, talvez por vergonha de opróbrio público.

 

Mas agora várias circunstâncias ajudaram a ultrapassar esta barreira.

Primeiro, a disseminação das redes sociais que levaram à descoberta de que se podia dizer aquelas coisas em público e ter muita gente a apoiá-las.

Segundo, ter surgido um ativista político a dizê-las sem ser expulso de um partido do arco do poder (quando, como candidato à Câmara de Loures, André Ventura fazia parte do PSD de Passos Coelho), nem ser travado pela Justiça.

Em terceiro lugar, a neutralidade, o silêncio e o ignorar dos poderosos.

Ficaram assim expostos os sinais claros de que se poderia dar a emergência daquelas emoções e sentimentos mais retrógrados e negativos, sem perigo nem vergonha.

Veja-se, aliás, o caso infame de Ihor Homeniuk que foi o culminar de anos de abusos e torturas a pessoas inocentes com a complacência e o encorajamento disfarçado do Governo, ignorandoas recomendações que o Mecanismo Nacional de Prevenção da Tortura fazia desde,pelo menos, 2018.

Ou de inúmeros políticos, nacionais e estrangeiros (em Portugal, Espanha, França, Itália, etc.) que têm vindo a põr em prática políticas de discriminação contra comunidades ciganas, como se fosse legal ou ético fazê-lo seja com quem for.

 

O problema vai-se tornando mais grave quando um líder começa a catalisar este caldo de emoções a fim de unir as pessoas em multidões que se sentem suficientemente organizadas para iniciarem uma ação violenta. O que até agora, mas apenas até agora, não foi o caso em Portugal.

 

A um nível individual, quando é que temos uma resposta violenta? Quando ativamos o sistema neurocomportamental de regulação de emoções focado na ameaça e na autoproteção. A resposta torna-se ainda mais violenta se, simultaneamente, se se frustrar o sistema neurocomportamental focado na busca de recursos e de incentivos.

Para estimular estes processos de ativação e de frustração nas pessoas, o líder proclama que o mundo é um lugar perigoso, que está dominado pelo mal, que só ele o conseguirá pôr bom e que, inclusivamente, só ele conseguirá proteger as pessoas de bem, mesmo que para isso precise do poder total, ou seja, de uma ditadura.

 

A um nível grupal, isto piora se estas pessoas percecionarem que o seu grupo está em conflito com outros grupos. Principalmente, se favorecerem vias mais agressivas e violentas para conseguirem o que querem, devido a privilegiarem precisamente a agressividade e a violência, e devido a se sentirem mais fortes do que os outros grupos.

Note-se, aliás, que se estas pessoas realmente acreditassem na propaganda que diz que elas não têm poder para fazer frente aos outros grupos (mensagem passada pelo líder populista), elas fugiriam, não lutariam.

Como esses outros grupos são na verdade minoritários e com menos poder, elas sentem-se à vontade para terem preconceitos contra eles e para apoiarem ações discriminatórias.

 

Uma outra característica destas pessoas consiste em elas tenderem a escolher líderes mais autoritários, mais fortes ou mesmo brutos. Porque estes são vistos como os mais capazes de acelerar a coordenação dentro do grupo, de forma a este ficar mais rapidamente organizado e capaz que o grupo inimigo.

Por isso, é natural que elas tendam também a escolher líderes que não respeitem as regras. Regras essas que, no fundo, elas acham que fizeram o outro grupo ficar mais forte. Daí que é precisamente o facto de esses líderes serem descaradamente mentirosos, oportunistas e malcriados que os torna mais atraentes para estas pessoas por assim se revelarem claramente contra o sistema em relação ao qual elas se sentem revoltadas e que desejam deitar abaixo.

 

A sustentar todos estes processos, temos a tendência da natureza para escolher as vias mais fáceis e mais “económicas”, isto é, menos consumidoras de energia. Esta tendência leva ao que alguns investigadores chamam de “preguiça cognitiva” que tem como consequência a adesão a ideias simples, fáceis e carregadas emocionalmente (que assim, nos dispensam de refletir). Ideias essas que caracterizam habitualmente as arengas destes políticos e as notícias falsas. Esta hipótese, a ser verdadeira, é um pouco desanimadora pois pouco se pode fazer para a contrariar no curto prazo (a longo prazo, só na escola, ensinando experiencialmente que o prazer e as vantagens de pensar racionalmente se sobrepõem em larga medida às dificuldades em fazê-lo).

 

A acrescentar a tudo isto, muitas destas pessoas já não acreditam nas instituições e desejam uma revolução que permita começar tudo do zero. Essas pessoas, há umas décadas, seriam de esquerda, hoje são de direita. É irresistível pensar que a nossa matriz cultural judaico-cristã tem aqui uma influência extraordinária: a ideia emocionalmente apelativa de um dilúvio que destrua e apague tudo, mas que permita um novo recomeço; acompanhada, claro, da ilusão de que lhe sobreviveremos porque estaremos cada um de nós dentro da Arca de Noé.

Podem-se apresentar várias causas possíveis para a raiva das pessoas contra as instituições: a desigualdade social que tem vindo a aumentar de modo ostensivo; a corrupção com a cumplicidade dos grandes poderes; o uso da força com quem é fraco e as manifestações de fraqueza com quem é poderoso; a sensação de absoluta impotência face aos poderosos; o sentirem-se remetidas para uma solidão cada vez maior; e a constatação de que a sua voz não é ouvida por nenhum decisor com poder.

Peguemos, a título de exemplo, no caso da desigualdade. Os protestos destas pessoas são sempre contra um determinado tipo de desigualdade, real ou imaginária, mas não contra onde ela é maior e causa verdadeiramente o seu mal-estar. Explicando melhor, as pessoas pegam nessa raiva contra os poderosos (que sabem ser sem esperança, visto que as instituições que deviam regular o poder falharam) e desviam-na para grupos minoritários e mais inofensivos.

 

E aqui, surge um outro problema. Os conflitos de opiniões são inevitáveis numa democracia e não a põem em perigo, pelo contrário. Mas quando ficamos convencidos de que o benefício de outro grupo é um prejuízo para nós, quando não sentimos que estamos todos no mesmo barco, que há gente que deve ir borda fora (e que podemos fazê-lo sem custos), que não há qualquer interesse em trabalhar em conjunto para resolver os problemas, então estamos em território muito perigoso (que pode chegar à guerra mesmo).

 

Além disso, um novo fator a ter em conta, hoje em dia, é o facto de as redes sociais terem um papel extraordinariamente importante na comunicação, coordenação e afunilamento de crenças e de esforços em tempo real. O problema é que elas nunca incentivam a manter as pessoas e as ideias calmas, pois não é isso que lhes faz gerar tráfego nem dinheiro. Ou seja, elas tendem a fornecer mais combustível para incendiar as mentes das pessoas.

Portanto, nas redes sociais, temos um dilema: como é que a nossa sociedade consegue proteger uma maioria relativamente calma de uma minoria relativamente violenta? Por autorregulação das próprias redes? Quando o fazem, elas são criticadas por fazerem censura. Por imposição do poder político? Outra vez críticas de censura. Não se vê uma saída fácil para a complexidade desta situação.

 

Porém, pelo menos ao nível do contacto direto com estas pessoas, o que podemos nós fazer para contrariar estes movimentos disruptores da nossa democracia, tanto no que se refere à emergência de ideias, crenças e sentimentos retrógrados e agressivos, como no que se refere à sua coordenação e à sua posterior transformação em ações violentas?

 

A primeira sugestão é claramente começarmos por ouvir as frustrações destas pessoas. Não só para perceber e validar as suas emoções, mas também para descobrirmos com que circunstâncias elas se sentem exatamente revoltadas. E não, não serve absolutamente para nada confrontá-las com argumentos, ou com julgamentos ou com condenações. Elas sentirão tudo isto como um ataque pessoal e irão entrincheirar-se mais solidamente nas suas ideias e nas suas emoções negativas (que serão, por este processo, ainda mais exacerbadas).

A seguir, tentarmos saber que benefícios concretos (não os vagos e abstratos para a sociedade em geral, dado que não são esses que movem verdadeiramente as pessoas a um nível individual) elas esperam obter por meio de uma mudança de políticas.

Depois, procurarmos encontrar soluções abrangentes e satisfatórias para todos, tendo o cuidado de, no processo, e sem tentar enganá-las, esforçarmo-nos por conseguir acender e alimentar a esperança de uma vida melhor para todas estas pessoas.

Encontradas as soluções mais inclusivas para a satisfação das necessidades de todos, o passo seguinte é unir e canalizar os esforços das pessoas para pressionar efetivamente os poderes a porem em prática estas soluções, dando assim a elas benefícios concretos (por exemplo, garantindo uma melhor distribuição da riqueza a fim de se gerar menos desigualdade).

Finalmente, e não menos importante do que tudo o resto, lutar pela reconciliação, a fim de levar as pessoas a sentirem-se suficientemente seguras para poderem deixar de ser tribais. Nomeadamente, para porem de lado a noção de que a tribo dos outros está contra a minha e a pô-la em perigo .

E podermos passar todos, dentro deste território, a viver em paz e com bem-estar, como uma só comunidade e um só povo.


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