São muitas e graves as consequências que as pessoas que sofreram maus tratos na infância têm de suportar (ver uma lista condensada delas, por exemplo, em MAGALHÃES, Teresa, Maus Tratos em Crianças e Jovens, Quarteto Editora, Coimbra, 2002).
Mas há uma que é tanto mais dramática quanto raro é referida: as pessoas matratadas de forma continuada na infância e na juventude acabam por adquirir a convicção profunda de que não poderão nunca ser amadas. Na verdade, para estas pessoas, a ideia de que alguém as possa amar simplesmente pelo que elas são torna-se inimaginável.
Como ninguém consegue (sobre)viver com a certeza desta impossibilidade de amor, estas pessoas recorrem então a duas possíveis vias para enganar este desespero.
Uma das vias é o exercício do poder: já que não acreditam poderem ser amadas, pelo menos são obedecidas, isto é, elas trocam o amor livremente dado por uma sua contrafacção: a submissão imposta por uma força que é, na realidade, ausência de força interior (para suportar esta dor). Com todo o cortejo de horrores que esta opção normalmente acarreta para os mais fracos, principalmente para as crianças.
A outra via consiste em fazerem o que podem para conseguirem merecer a gratidão, outro substituto do amor, pobre, mas aceitável: serem boas, serem obedientes, irem ao encontro das expectativas dos outros, humilharem-se, etc., a muito elas estão dispostas para obterem um pouco de reconhecimento que amenize a dor de não serem amadas.
Que não haja ilusões: a situação destas pessoas é verdadeiramente trágica. Façam elas o que fizerem, sejam quais forem os extremos a que cheguem (e há um longo continuum que vai desde um Hitler ou um Estaline até aquelas desgraçadas que chegam a ser mortas pelos seus maridos mas que são incapazes de os abandonar), jamais, repito, jamais assim a ausência de esperança da sua condição é passível de ser superada. E, concomitantemente, este sofrimento é quase sempre invisível aos olhos das outras pessoas e é quase sempre por estas ignorado. Por nós. Por mim.
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