(...) Eu dei um modesto contributo para a comédia, divulgando no ProfAvaliação uma mão cheia de fichas de auto-avaliação preenchidas. Em troca, recebi emails de agradecimento com este teor:"Ramiro! Obrigado pela dica. Isto é que foi fazer copy and paste! Sabes uma coisa? Demorei menos tempo a preencher a FAA do que a escrever o Relatório Crítico"." Na minha escola, optámos por entregar fichas de auto-avaliação praticamente iguais. Foi cá um copianço!" (...)
(In "De comédia a farsa. (...)", Ramiro Marques)
Se os actores da farsa são os outros, a mim não me causa particular problema.
Como são os professores, fico triste: já nem precisamos que nos rebaixem, nós fazêmo-lo sozinhos.
Não entreguei os o.i., não entreguei a ficha de auto-avaliação.
E nem entreguei qualquer justificação. Para mim isso seria ainda admitir que o Governo e o ME podiam ter razão. Não têm e eu desprezo-os.
2 comentários:
É agora, ou nunca…
Decidida, abriu a porta da sala e entrou.
Para sua surpresa, uma turma silenciosa esperava-a, já sentada, os livros e cadernos estranhamente arrumados nas secretárias; até o quadro verde estava limpo, sem os grafiti do costume .
- Estão todos doentes, só pode ser…
Pousou a mala do portátil na sua secretária e voltou-se para o grupo de rostos bem dispostos que a observavam, com uma curiosidade que ela achou fora do normal. Pareceu-lhe mesmo que o Tiago, o “l’enfant terrible” da turma… até lhe estava a sorrir.
- Abusei dos analgésicos, ontem à noite? – deu consigo a pensar com os seus botões. Não lhe parecia… apesar de isto das otites ser uma coisa verdadeiramente chata… e dolorosa, também.
Encheu-se de coragem. Afinal de contas, aquela aula seria só de quarenta e cinco minutos; as possibilidades de alguma coisa correr mal eram portanto … reduzidas.
- Ora bem, vamos a isto ? Hoje o assunto será… o Dia dos Namorados, claro. ! Que me dizem ?
O Pedro, na primeira fila, disse qualquer coisa. Ou pelo menos, assim parecia.
- Diz Pedro, não percebi…
O Pedro voltou a dizer qualquer coisa. Mas ela não lhe ouviu uma única palavra. Mas era capaz de jurar que o vira nitidamente a movimentar os lábios.
- Desculpa lá, Pedro – e a sua própria voz fez-lhe um eco estranho no cérebro – mas os meus ouvidos hoje não estão grande coisa… o que é que disseste ?
O aluno Pedro voltou a repetir a mesma lenga-lenga, apesar de ela não ter conseguido ouvir absolutamente nada. Mas o que quer que fosse deveria ser tido a sua piada, porque alguns alunos esboçaram uns risinhos, apesar de não os conseguir ouvir.
Pior… o médico do centro de saúde que lhe diagnosticara a otite não falara nada em surdez… simplesmente em dores de cabeça e dores de ouvido, claro. Agora o facto de estar ali numa sala de aulas, a falar para o boneco, que é como quem diz, a falar sozinha… era um pouco complicado.
Lembrou-se que já tivera algumas aulas onde nem se importaria de ter estado surda, para não os ouvir… mas hoje nem era um desses dias, e falar do dia dos namorados assim…
Esforçou-se por parecer natural.
- Luisinha… - começou ela – vamos a ver… quem é o santo padroeiro dos namorados ?
A interpelada, uma gordinha ruiva da segunda fila, remexeu nervosamente nos cadernos.
- …
- Não percebi, Luísa… importas-te de repetir ?
- …
Bonito serviço. Agora é que estava a começar a ficar preocupada. Recuou no tempo. Lembrava-se de ouvir a campainha a tocar ? Sim… portanto a surdez surgira há bem pouco tempo…
- Agora sim, estás bem arranjada – resmungou para dentro – lá vais ter que arranjar um atestado médico…
Decidiu tentar uma última vez, antes de se dar por vencida.
- Manel – e esticou o dedo para a fila do meio – podes ser tu… quem é o padroeiro dos namorados ?
Estranhamente, o Manel sabia a resposta.
- …
Conseguiu ler-lhe nos lábios a palavra “Nicolau”. Mas som, nem um pio…
Baixou os braços, vergada pela evidência dos factos. A otite virara surdez, estava mais que visto… agora o mais importante seria saber quanto tempo é que teria que ficar assim… isolada do mundo, sem conseguir ouvir nada. Um dia ? Uma semana ? … Mais do que isso ?
Engoliu em seco.
(continua...)
(...continuação)
A melhor coisa a fazer era deixá-los sair e ir imediatamente tratar do atestado. Com um bocadinho de sorte, talvez ainda apanhasse o centro de saúde aberto…
- Bom… - começou ela – como já perceberam, os meus ouvidos hoje estão a pregar-me a partida. E portanto, hoje vou dar-vos folga… Podem arrumar as vossas coisas e sair…
Não foi preciso repetir. Um após outro, fecharam as mochilas e foram abandonando a sala, num ritmo ordeiro e num silêncio que ela nunca julgara ser possível.
Virou-lhse as costas e começou ela própria a arrumar a sua mala.
- Atchiiiimmmm.
Como ?
Virou-se para trás. A sala estava quase vazia. Duas alunas arrumavam ainda algumas coisas e bem na sua frente estava o Tiago, o l’enfant terrible, vermelho como um tomate, estático, paralisado, olhando fixamente para ela.
- Eu ouvi-te. – balbuciou ela. – eu ouvi-te.
As duas raparigas trocaram um olhar cúmplice entre si e desataram a correr porta fora, às gargalhadas.
- As melhoras p’a sua otite, s’tora – disse então o Tiago de fininho, com um sorriso matreiro de orelha a orelha. Depois, escapuliu-se também para o exterior da sala.
Caíra que nem uma patinha.
Com que então estava surda, hem ?...
- Patifes. Odeio-vos. Patifes. Arranco-vos as orelhas…
Eles já não a ouviram, correndo alegremente para o pátio.
( E então... uma boa semana. )
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