Há uma linha vermelha para o assédio que o distinga da sedução?
Há. É quando uma das partes mostra inequivocamente que não quer e a outra continua a invadir o seu
espaço íntimo. Há abuso? Há, quando, perante o não, a parte mais poderosa
ameaça a outra e/ou se vinga dela. Há um verdadeiro crime de abuso? Há, quando
ele é concretizado por via da força e da violência, principalmente quando há um
grande diferencial de poder, por exemplo, no caso de um adulto na pessoa de uma
criança.
Depois, há muitas situações menos claras. Por exemplo, entre
duas crianças. Ou entre uma criança e um adolescente. Ou quando aquele que não quer sente um pavor tal que fica paralisado e não consegue sequer mostrar que não quer. Ou outras situações. Sejam elas quais forem, a prudência e a justiça mandam que talvez não devamos julgar a vítima (exceto se tivermos sido os juízes mandatados para o fazer).
Das muitas mulheres que amei a quem nunca cheguei a dizer ou sequer a mostrar que estava apaixonado, houve uma a quem, muitos anos depois, confessei o que tinha sentido. Ela
exclamou: “Então, porque é que não disseste nada? É que eu também estava apaixonada
por ti!”.
Naquela altura, esperava-se que fosse o homem a declarar-se.
A mulher que o fizesse era bastante mal vista, principalmente se confessasse o
seu desejo. Várias raparigas, frustradas perante a minha contenção (ainda por cima, eu era um bocado obtuso, não percebia se elas estavam ou não realmente interessadas em mim),
perguntavam aos meus amigos da altura se eu era gay. Estes transmitiam-mo para ver se
eu mudava de comportamento. Ora, eu tinha muito antes decidido não seguir esse código social, para grande perplexidade e
incompreensão da parte delas (e deles também, diga-se a verdade). Portanto, não mudava, mas também não sabia como fazer de modo diferente (acrescento
que essa decisão nasceu do terrível choque que foi para mim a leitura, em plena adolescência, do livro
Escravatura Sexual, de Stephen Barlay). Creio que fui deste modo criando a pouco e
pouco uma provável e errada reputação de homossexual.
Assim, por causa desta pressão social, na verdade, quantos homens poderão ser acusados de claro assédio sexual intencional e manipulador? De marialvismo, bastantes. De mulherengos, muitos. De
incorretos, mal educados e boçais? Muitos mais do que seria de desejar. Mas alguém que não força,
pergunta sempre, não constrange, não ameaça nem se vinga, estarei a ser injusto se puser a hipótese de que isso talvez não configure assédio
sexual? Que aliás se define como:
Assédio sexual é todo o comportamento indesejado de caráter sexual, sob forma verbal, não verbal ou física, com o objetivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afetar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador.
Alberto Caeiro
VIII - Num meio-dia de fim de Primavera
(…)
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.
(…)
Este texto de Alberto Caeiro mostra como naquele tempo era considerado "engraçado" o levantar as saias às raparigas. Por isso, pergunto-me se haverá algum homem que possa dizer-se completamente inocente de assediar as mulheres? E, sendo assim, nós homens teremos algum direito ou alguma autoridade para dizer às mulheres os termos em que elas devem partilhar as suas queixas? Suponho que não.
Falando por mim, também eu levantei as saias a uma menina minha colega de turma uma vez, na escola primária (que era mista, algures entre 1966 e 1968) e lembro-me disso com uma nitidez que a imensa vergonha e mágoa que ainda hoje sinto mais acentuam.
Depois de 1968 (ano em que entrei no 2º ciclo, mas agora numa escola já só com rapazes), algo deve ter acontecido, não me lembro do quê, porque comecei a defender as raparigas na rua de maus-tratos verbais e físicos (desde o simples molhá-las com pistolas de água no Carnaval até coisas mais graves). Podia fazê-lo porque eu tinha um físico possante e impunha respeito aos outros. Mas a tristeza e a vergonha que ainda hoje me assombram (lembro-me perfeitamente da rapariga a quem levantei as saias e do seu primeiro nome, bem como da forma aflita como reagiu), essas ficaram para sempre.
Às vezes, pergunto-me se os muçulmanos mais radicais não estarão, na sua sabedoria (se ela é válida ou não, é outra questão), a ver as coisas com uma lucidez que nos está a faltar a nós. O facto de obrigarem as mulheres a taparem a maior parte ou a totalidade do seu corpo para não excitar os impulsos selváticos dos homens, não estarão a demonstrar a visão que têm deles como primitivos subdesenvolvidos incapazes de autocontrolo?
Em suma, seja qual for o conteúdo e a forma da denúncia que for feita por uma mulher, o que eu sei é que, na dúvida, estou sempre do lado da vítima, do mais fraco, daquele que relata as coisas com mais incongruências (principalmente, se souber perfeitamente como não o
fazer).
Conhecemos alguma mulher que não tenha nunca sido assediada sexualmente na rua? Portanto,
quando as mulheres se queixam é provável que estejam a dizer a verdade. Eu,
pelo menos, à partida respeito todos os seus testemunhos.
E também o que sei é que, nesta matéria que tem séculos, se não houver alguma
violência da parte dos tradicionalmente fracos, nada mudará na relação de poder e de abuso.
Finalmente,
sei que nesta e noutras áreas, se a mulher não se comportar como soldado perdido em
território inimigo, na formulação feliz de Arturo Pérez-Reverte, é destroçada pelos homens (e pelas mulheres que se identificaram com os valores masculinos):
Não sei
se todas as mulheres são assim, mas queria descrever uma mulher que é um
soldado perdido em território inimigo. Creio que o último herói realmente
romanesco que resta à cultura ocidental é a mulher. Reúne todas as
características: tem de trilhar o mundo dos homens com regras feitas pelos
homens; tem de ser tão ou mais eficaz que eles; os erros delas pagam-se mais
caros do que os dos homens e, ao mesmo tempo, não deixa de ser mulher, de
conservar toda a sua herança biológica, aquilo a que chamo «instinto de
ninho».