sexta-feira, julho 07, 2023

Creches vão poder funcionar à noite e em contentores!?

 


Ainda mais oportunidades para negligenciar e maltratar crianças? Agora, por via legal?

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«Creches vão poder funcionar à noite e em contentores»

«Já há creches abertas até mais tarde, mas a portaria que entrou na quinta-feira em vigor prevê que possam funcionar “em permanência, incluindo período noturno e fins de semana”.»

«(…) forçou o Governo a rever regras para aumentar os lugares: vai ser permitido mais duas crianças por sala, converter espaços sem licenciamento, (…)»

«Para Susana Batista, a desburocratização era “urgentíssima”. Num levantamento aos associados, a ACPEEP concluiu que 25% têm “salas vazias” que podiam converter em salas de creche mas, para tal, tinham de fazer obras profundas, o que exigiria investimento avultado e tempo. “Agora é só equipar as salas”, frisa Susana Batista» (presidente da Associação de Creches e Pequenos Estabelecimentos de Ensino Particular). 

«A portaria prevê a isenção de novo licenciamento para a reconversão de espaços que já têm alvará para funcionar. Bastará aos estabelecimentos comunicar a mudança ao Instituto da Segurança Social.».

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Pergunto: o governo, em vez de garantir condições mínimas aos trabalhadores para poderem cuidar dos seus filhos, não está a sacrificar estes às “necessidades da economia e das empresas”? Ou seja, a entregá-las a um mundo cada vez mais desumano e mais selvagem?

Na minha opinião, "Agora é só equipar as salas" em salas que precisavam de "obras profundas" (que não quiseram ou não puderam fazer, tal devia ser o estado delas!) é entregar as crianças a autênticos abutres. Não tenho palavras para descrever quem dá carta branca para isto!


quinta-feira, junho 29, 2023

Contra a vitimização e o conformismo em alguns professores

 


Não concordo com os professores que escrevem, ou que dão publicidade a quem escreve, textos saudosistas sobre a Educação, em que o alvo primordial são sempre os estudantes (porque estão mal preparados, porque não vão às aulas, porque são distraídos, porque copiam nos trabalhos, etc., etc.). Não divulgo aqui nenhum desses textos porque precisamente não pretendo dar-lhes publicidade e porque todos sabemos do que falo aqui.

Concordo ainda menos que os professores divulguem publicamente que se conformam com a situação, que se tornaram maus professores, que ensinam menos e pior, que avaliam sem honestidade, etc., etc. Tudo sempre por culpa dos outros, normalmente dos alunos.

Eis as razões da minha discórdia:

  1. Este tipo de textos não atrai a simpatia para os professores de nenhuma parte da população (ao contrário do que dizem esses professores, ninguém fica contente com esta situação). 
    • Alunos? Detestarão ser retratados desta forma. Principalmente, aqueles que não são assim, que são muitos (e não os poucos que aqueles autores relutantemente admitem que apesar de tudo existem).
    • Pais? Nunca! Porque sabem que estes professores estão a defraudar descaradamente o futuro dos seus filhos.
    • O resto da população? Na melhor das hipóteses, encara estes textos (de queixa, de vitimização absurda) com indiferença. Nalguns casos, até poderão atrair a sua pena (o que duvido); no entanto, quem deseja ser objeto da piedade dos outros? Eu não, mas há gente para tudo. Na maior parte das vezes, eu diria que eles estimulam um sentimento de um cada vez maior desprezo pelos professores. 
    • E professores? Acredito que a maioria não se sente retratada por aqueles textos.
  2. Vemos outras classes profissionais (algumas muito, mas mesmo muito mais maltratadas do que os professores) a produzirem e a divulgarem este tipo de textos? Não. Não vemos médicos (nem  enfermeiros, nem técnicos auxiliares de saúde) a dizerem que os doentes saem mal tratados das suas mãos. Não vemos juízes a dizerem que as pessoas saem dos julgamentos como vítimas de decisões injustas. Etc., etc. Porque não o fazem? Porque sabem que, se dissessem este tipo de coisas, lançariam o descrédito total sobre toda a sua classe e estariam a atrair a raiva e o desprezo da população. E eles não são parvos.
  3. A atitude de culpabilização dos outros, nomeadamente dos alunos, reflete uma das opções mais perigosas que os seres humanos podem tomar: a de negarem a responsabilidade pelo que fazem. Sabemos da história o resultado trágico que isto dá. E não corresponde à realidade. Na verdade, se assumirmos a nossa responsabilidade, mesmo naquilo que somos obrigados a fazer, percebemos que temos, ainda assim, uma razoável margem de manobra, de liberdade e de autonomia. Quando decidimos não assumir a responsabilidade, fazemos como os autores daqueles textos: não só traímos a missão para que fomos contratados (e pela qual estamos a receber dinheiro), como pouco fazemos para melhorar a situação de todos no dia-a-dia. Ou seja, tornamo-nos em conformistas do pior tipo: aquele que colabora com o jogo dos opressores e que não tem vergonha de revelar em público a sua condição de conformista (muitas vezes, para atrair mais conformistas para o seu lado). Não precisamos deste tipo de professores. Aliás, a bem dizer eles nem são professores, são pseudoprofessores.
  4. Este tipo de textos saudosistas de uma idade do ouro da educação promove uma ideia totalmente falsa: é que essa idade do ouro nunca existiu. O que existiu sempre, desde a Antiguidade Clássica, foram velhos a queixarem-se de que os jovens não querem aprender, que não querem trabalhar, etc. Os séculos passam, impérios nascem e caem, mas o discurso é sempre o mesmo. Céus, já chateia!
  5. Estes textos promovem uma visão do professor como vítima dos outros. É um mau lugar para escolher estar. Sentir-se vítima faz com que as pessoas percam discernimento e energia para as lutas, essas sim que são muito necessárias travar. Quer a nível individual, no dia-a-dia (servem para mantermos a nossa autoestima); quer a nível coletivo (as únicas que podem dar algum resultado significativo para todos).
  6. Naqueles textos, apresenta-se uma imagem do professor que dá argumentos fortíssimos aos que defendem a sua substituição por filmagens ou por robôs. Na verdade, para fazer aquilo que nesses textos os autores dizem que fazem, para que é que é preciso um professor real? Pelo menos, estas alternativas não se vão andar a queixar. E até acredito que estas tecnologias sejam capazes de fazer um trabalho melhor do que eles… 
  7. Divulgar este tipo de textos dá palco a indivíduos protofascistas, com discursos nostálgicos e reacionários sobre “os bons velhos tempos” a que, segundo eles, é preciso regressar. Além disso, eles transportam muitas vezes esta maneira de pensar para denegrir outras áreas como a da igualdade de direitos e de oportunidades entre todos os seres humanos.
  8. Finalmente, estes textos a culpabilizar os alunos afastam a atenção das pessoas dos verdadeiros culpados: governos e, acima de tudo, uma sociedade implacavelmente capitalista e consumista.

Em suma, os autores deste tipo de textos parecem que estão a ser empáticos e isso pode ser agradável no momento para os professores que se sentem incompreendidos. Porém, na verdade, o que eles estão a fazer é a desmoralizar, a depreciar e a debilitar aqueles professores que têm brio na sua profissão e que o querem manter, não importa quais sejam as circunstâncias adversas que possam encontrar no seu caminho.


domingo, maio 28, 2023

Crianças discriminadas como seres não humanos

 

(Booking.com, página consultada em 20-05-2023)

Vi as fotos que uma amiga publicou de uma quinta no Douro. Fiquei com vontade de dar um mergulho naquela piscina. Procurei pelo nome, "não aceitamos crianças". Foi na mesma semana em que o B. me falou de um lugar incrível que havia no Algarve, "não aceitamos crianças com menos de cinco anos", avisava esta unidade hoteleira. Pensei fazer uma lista de todos estes nomes onde, se não aceitam o meu filho, também não me aceitam a mim. Depois, percebi que isto de ter espaços childfree - livres de crianças - está a alastrar. Há quem faça convites de casamento "só para adultos". Por mais que perceba que as crianças podem ser barulhentas, foram os adultos quem sempre me incomodaram. Fazerem das crianças um filtro na pesquisa de alojamento é muito discutível. Daqui a pouco, temos filtros para encontrar hotéis "gordosfree", "velhosfree", "mulheresfree"...

(Joana Almeida Silva, JN de 27-05-2023)

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Um mundo, qualquer mundo, sem crianças é um mundo onde a morte começa a instalar os seus arraiais. As crianças simbolizam o início, a renovação, a inocência e, acima de tudo, a alegria. Bem tristes devem ser as pessoas que não conseguem ver isto para além das birras e de outros comportamentos. Que são sempre, mas sempre, sempre, muito menos graves do que a selvajaria (ver parágrafo a seguir) de que os adultos são capazes (e que praticam, sim, claro, em todos os lados incluindo nesses lugares que proíbem a presença de crianças).

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Jornal de Notícias de 04-06-2023:


Bárbaro homicídio de criança de três anos à pancada e com torturas (...)

A semana de 14 a 20 de junho em que Jéssica esteve em cativeiro na casa dos homicidas, no Beco do Pinhana, foi de terror para a menina. Agredida de forma brutal, foi-lhe atirado um líquido abrasivo para a cara que a desfigurou e foi usada para tráfico de droga. A autópsia identificou 125 ferimentos no seu corpo (ver texto ao lado). Colocaram-lhe até cocaína à força dentro do corpo.

(...)

Em seis páginas do relatório da autópsia que consta na acusação aos alegados homicidas de Jéssica, o Ministério Público (MP) aponta 125 golpes no corpo da menina, incluindo o derrame de um produto abrasivo na face que lhe removeu por completo a pele do nariz e buço. Só na cabeça, são 25 os golpes, outros 60 nos braços e pernas, 30 no peito, seis no abdómen e cinco na zona genital.

Cristina e os filhos desta, Eduardo (o único em liberdade) e Esmeralda, de acordo com o MP, na semana de 14 a 20 de junho, utilizaram a menina como "mula" de droga e violaram-na, introduzindo-lhe cocaína no ânus, numa viagem entre Leiria e Setúbal.

(...)

Em maio, a menina já tinha sido entregue aos raptores durante dois dias por causa de uma primeira dívida de Inês por um serviço de bruxaria no valor de 100 euros. Ela conseguiu pagar, mas quando Jéssica lhe foi devolvida, estava tão maltratada e ferida, que "apenas se alimentou de líquidos durante uma semana", pode ler-se na acusação. Isso não impediu que, a 14 de junho, Inês a entregasse de novo. Desta vez, não sobreviveu.

Estas unidades hoteleiras receberiam estes adultos sem problemas, mas recusariam admitir a criança...

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Revolta sempre que se fazem generalizações abusivas a partir de uma minoria de casos. Porque a esmagadora maioria das crianças, na esmagadora maioria do tempo, porta-se bem – e eu sei do que falo, pois fui professor durante a maior parte da minha vida profissional (e não foi em escolas de elite!). Revolta, principalmente, que haja hotéis (sim, no Algarve também) que anunciam “Não são permitidas crianças”, como se se tratasse de animais e não de seres humanos.

E acima de tudo, dói que este tipo de discriminação não suscite uma revolta generalizada. Se fosse qualquer outro grupo da população, vulnerável e sem voz, o escândalo seria enorme. Com as crianças, acha-se natural.

quarta-feira, maio 03, 2023

Contra um país injusto, contra um país oprimido pela pobreza

 


Para as pessoas que desconhecem qual o meu posicionamento político (entendido no sentido lato e não de partidos), esclareço aqui o seguinte:

Eu estou sempre do lado dos mais fracos e dos derrotados. E sempre contra os violentos, contra os malvados, e contra os ofensivos e desrespeitosos. Acima de tudo, estou contra os carrascos e seus mandantes, colocando-me irredutivelmente do lado das vítimas. 

Nada disto tem a ver com a religião, porque sou, além de ateu, antiteísta na medida em que considero que a ideia de deuses trouxe mais horrores à humanidade do que benefícios. Portanto, absolutamente nada a ver com religiões.

Assim, nunca estive, estou ou estarei do lado de quem envolve os seus povos em guerras (para mim, dentro das soluções inaceitáveis, a guerra é a mais inaceitável de todas). Por isso, por exemplo, nunca salazarista, nunca putinista.

Além disso, não sou um fanático nem do cada um por si, nem da subjugação ao coletivo. Embora simpatize com as formas moderadas de ambas as posições: gosto de ter liberdade para fazer o que quero, ao mesmo tempo que acredito que devo alguns esforços e sacrifícios em prol do bem comum (do qual beneficio e, portanto, que tenho o dever de retribuir pelo menos em parte).

E só sou contra os fortes (incluindo os ricos) quando abusam do seu poder e da sua riqueza, lançando os outros na miséria.

Vejamos como isso acontece.


Recordemos como o Estado (isto é, todos nós) tem gasto muito mais do que isto com os bancos todos os anos:

“A Banca custou ao Estado 22 mil milhões de euros entre 2008 e 2021.”

22.000.000.000 € / 13 anos = 1.692.307.692€ por ano

Ou seja, cerca de 1700 milhões de euros por ano. Desta vez, foram “só” 459 milhões de euros! Mas o suficiente para fazer duplicar, note-se, duplicar o défice!

Claro que isto ajuda a que os bancos


O que dá mais de 10 milhões de lucros... por dia! À custa de famílias que vão perdendo as suas casas porque as prestações aumentaram brutalmente, chegando em muitos casos a mais do que duplicar em poucos meses!

Como eu gostaria de ouvir os partidos de direita a reagirem contra isto! Mas só os ouvimos a bramar contra o Rendimento Social de Inserção (RSI). Vamos comparar.

Nos últimos anos, o Estado tem gasto com o RSI, por ano, entre 300 e 400 milhões de euros. Mas a beneficiar perto de 200 mil pessoas e 100 mil famílias em dificuldades. Em vez da meia dúzia de bancos e de banqueiros com ordenados milionários.

Mas o problema não está só nos bancos…


Para dar estes dividendos (e isto só no PSI, isto é, nas empresas com mais de 1000 milhões euros de capitalização), nem consigo imaginar quantos terão sido os lucros!

Na verdade, não somos um país pobre, somos um país que está a ser claramente empobrecido pelos mais poderosos e mais ricos! 

Uma das formas que eles usam para empobrecer o país é pagando salários baixos e promovendo a precariedade.

Segundo o estudo Faces da pobreza em Portugal (2021), da Fundação Francisco Manuel dos Santos (p.19.), 32,9% (um terço) dos pobres em Portugal são trabalhadores. Isto é, são pessoas que com o que ganham não conseguem deixar de ser pobres, de tal maneira são mal pagos.

E, para quem acha que os pobres são uns malandros que não trabalham, será útil ver, segundo o mesmo estudo, os perfis da pobreza em Portugal:

1. «Trabalhadores»: 32,9%;

2. «Precários»: 26,6%;

O que é um “precário”? É

Uma pessoa que está numa relação laboral, no contexto da qual não consegue aceder a uma série de direitos que estariam afetos a essa relação laboral, por exemplo, a estabilidade, a remuneração garantida e periódica, o acesso a uma indemnização quando deixa de estar vinculada e o acesso a um sistema de saúde.

32,9 + 26,6 = 59,5%. Ou seja, mais de metade dos pobres trabalha!

3. «Reformados»: 27,5%;

4. «Desempregados»: 13%.

Portanto, os desempregados pobres que não trabalham e, eventualmente, talvez pudessem fazê-lo (digo talvez, porque aqui se incluem os doentes, os incapacitados, os que temporariamente estão sem trabalho, os analfabetos digitais, etc.), são pouco mais de 10% do número total de pobres.

Repare-se que, segundo o jornal online ECO,

A taxa de desemprego nunca foi tão baixa (5,8%) nem o número de pessoas empregadas foi tão elevado (4,9 milhões numa população ativa de 5,2 milhões pessoas).

Ou seja, apenas cerca de 300 mil pessoas estão atualmente desempregadas. Parece ótimo, não é verdade?

No entanto, segundo Luísa Loura, diretora da Pordata, e António Costa, primeiro-ministro de Portugal, sem apoios sociais, 4, 4 milhões de pessoas são pobres (têm rendimentos abaixo do limiar da pobreza - 554 euros mensais); passando para 1,9 milhões após as transferências sociais.

Como ficam as crianças neste panorama? Podemos imaginar, mas não é preciso, os números estão aí:

Segundo o Diário de Notícias

Cerca de uma em cada quatro crianças portuguesas com menos de 18 anos (22,9%) vivia, em 2021, em situação de pobreza ou exclusão social. (Eurostat)

E, segundo a ministra do Trabalho e da Segurança Social, Ana Mendes Godinho, o número de crianças em pobreza extrema, a nível nacional, é de 170 mil.

Lembremos que, há pouco mais de 2 anos, a Unicef alertou para os níveis crescentes da pobreza infantil em Portugal. Portugal era, a par de Itália e da Grécia, um dos países onde havia uma maior relação entre a pobreza infantil e a escassez de investimento em prestações familiares. Num relatório em que a Unicef admitiu que nos próximos cinco anos estes números deveriam aumentar.

É este o país que queremos? Onde até a vida e o bem-estar das crianças é completamente desprezado pelo grande capital? Eu não quero.

E termino, dizendo com Albert Camus:



domingo, abril 16, 2023

Como Portugal se encontra em 2023 e como as crianças são prejudicadas pela ganância da sociedade

 


Começamos com um gráfico publicado em R. Wilkinson and K. Pickett (2009). The Spirit Level: Why Greater Equality Makes Societies Stronger. London: Bloomsbury Press.

Por aqui vê-se que, nos países onde há menos desigualdade de rendimentos (ou seja, onde os rendimentos se encontram melhor distribuídos), há menos problemas sociais e de saúde. Sem surpresa, vemos como as sociais-democracias do Norte da Europa estão bem situadas. 

Um pouco surpreendentemente, vemos que Portugal é o pior a seguir aos Estados Unidos: estamos muito mais próximos do capitalismo dos E.U.A. do que da social-democracia do Norte da Europa. Mais problemas sociais e de saúde significam, evidentemente, uma vida muito pior para as crianças (que não têm meios para superar por si sós esses problemas).

Notemos que este gráfico foi elaborado com dados de antes do crash financeiro de 2008/9, de antes da “Troika”, de antes da pandemia, de antes da Guerra da Ucrânia, e de antes da inflação atual.

Três interrogações se impõem.

Primeira. Porque não seguimos o exemplo das sociais-democracias do Norte da Europa? Não teríamos que inventar nada, trata-se de imitar apenas; então, porque não fazemos algo de tão simples? Vamos ver que é porque não há vontade política.

Segunda. Será porque não criamos riqueza? E, portanto, simplesmente não há dinheiro para distribuir? Vamos mostrar que há.

Terceira. Depois de todos os acontecimentos acima invocados (crash, etc.), será que estaremos em pior situação do que antes de 2009? Vamos descobrir, sem surpresa, que a resposta é um rotundo sim: sim, estamos muitíssimo pior.

Para podermos responder a estas interrogações, façamos uma pequena pesquisa às notícias dos jornais nas últimas semanas (os sublinhados são meus).

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Consultemos o Ranking da Felicidade baseado na média dos três anos, de 2020 a 2022, divulgado ontem pelo World Happiness Report 2023:


Aqui, já ficámos pior que os E.U.A. E não surpreende excessivamente que Portugal tenha caído da 34ª para a 56ª posição.

De notar, como dentre os 10 países mais felizes, 7 são as sociais-democracias do Norte da Europa (8, se contarmos com a Suíça que também tem uma baixa desigualdade de rendimentos).

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Vamos, então, ver o que se passa nos E.U.A.

No "The Wall Street Journal", em 2 de março de 2023, é dada esta notícia:

Os lucros dos bancos caíram 6% no ano passado [2022], uma vez que a guerra, a inflação e as taxas [de juro] mais altas prejudicaram os resultados.

E em Portugal? Já sabemos que, de acordo com os maiores responsáveis do país, nós somos muito vulneráveis a crises na Europa e nos E.U.A. Portanto, aqui não haverá surpresas, certamente que estaremos piores do que eles. Ou não...?

No Jornal de Notícias de 11-03-2023:

Os cinco maiores bancos que operam em Portugal tiveram lucros de 2583 milhões de euros em 2022, mais 71% do que em 2021, quando o valor agregado foi de 1511,7 milhões de euros. Em média, somaram sete milhões de euros de lucros por dia.

Em particular (Jornal de Notícias de 13-03-2023):

  • O Montepio quintuplicou, 
  • o Novo Banco triplicou, 
  • o Santander duplicou, 
  • o Millennium BCP ficou-se pelos 50,3%, 
  • a CGD cresceu 44,5% 
  • e o BPI não foi além de uns míseros 19%.

Estes resultados foram obtidos no ano em que aconteceu a Covid-19, a Guerra na Ucrânia e a inflação galopante que continua atualmente. Ano de grande crise, a acreditar nos nossos responsáveis políticos e económicos.

Como terão os nossos bancos conseguido? Teremos GÉNIOS na nossa banca? Infelizmente, talvez não,…


Bom, assim também eu... 

Mas talvez estejamos a ser injustos. Afinal, os bancos precisam mesmo disto porque não tiveram ajuda de ninguém para ultrapassar as consequências da sua irresponsabilidade e da sua incompetência nos últimos anos... Ou tiveram?

No Jornal de Notícias de 13-03-2023:

A Banca custou ao Estado 22 mil milhões de euros entre 2008 e 2021. 

Note-se que o Estado não produz riqueza, portanto fomos todos nós, os contribuintes que "oferecemos" aquele dinheiro aos bancos.

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Esta quantia é tão gigantesca (22.000.000.000 euros) que não fazemos ideia do que ela representa. Façamos, enão, um exercício simples.

Um carrinho de supermercado cheio de produtos básicos talvez custe hoje em dia cerca de 100 euros. Logo, aqueles 22 mil milhões dariam para 220 milhões de carrinhos de supermercado.

Há 1,9 milhões de pobres permanentes (mesmo com a ajuda do Estado)

Então, teríamos para cada um dos pobres (considerados individualmente, criança, adulto, idoso, não como família) que continuam pobres mesmo depois dos apoios sociais, 116 carrinhos de supermercado, se aplicássemos aquele dinheiro a ajudá-los.

Assim, já começamos a ter uma ideia da dimensão daquela quantia descomunal que tiraram dos nossos bolsos para passá-la para os bancos.

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Aqui surge uma nova interrogação:

Não estaria na altura de os bancos começarem a agradecer e a retribuír esta nossa extraordinária generosidade? Por exemplo, remunerando melhor os depósitos e baixando o custo global do crédito?

Não, não, não, NÃO, NUNCA!!! NEM PENSAR!!!

Vítor Bento,  presidente da Associação Portuguesa de Bancos, explica-nos com simplicidade porquê, no Expresso Economia de 11-11-2022:


Por outras palavras, 

Curioso ainda um presidente desta associação não saber o que é um lucro excessivo, aquilo que um Zé da Esquina qualquer sabe. Na verdade, é impressionante como, no nosso país, pessoas ignorantes conseguem chegar a cargos de topo como este!

Ou então, uma explicação alternativa, é Ricardo Petrella que tem razão, numa entrevista na Economia Pura, nº11, pp.18-19) em relação às escolas de Gestão que ensinam (mal!) estas pessoas? 

Não vemos diferença entre as escolas militares e as escolas de gestão. Foi por isso que propus há muito o encerramento das escolas de gestão, de “management business administration”. Estas escolas não ensinam. O que fazem é ensinar a matar. Formam matadores, conquistadores, winners. Não ensinam a gerir uma empresa.

A verdade é que estes cursos de Gestão já atraem estudantes com valores mais elevados naquilo que na Psicologia se chama de Tríade Obscura (Dark Triad): narcisismo, maquiavelismo e psicopatia (Vedel, A., & Thomsen, D. K. (2017). The Dark Triad across academic majorsPersonality and Individual Differences, 116, 86-91.). O que explica de um Vítor Bento e de outros.

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Infelizmente, não são só os bancos a não ter nem ética nem humanidade.


Ou no Jornal de Notícias de 11-03-2023:

No comércio a retalho, os portugueses são todos os dias roubados. Aos preços de produtos de primeira necessidade são impostas escandalosas margens de lucro. Segundo a ASAE "no retalho, registámos margens médias de lucro bruto, referentes ao ano de 2022, entre: 20% e 30% (açúcar branco, óleo alimentar, dourada); 30% e 40% (conservas de atum, azeite, couve-coração); 40% e 50% (ovos, laranja, cenoura, febras de porco); e mais de 50% (cebola)". Este roubo prossegue em 2023.

Ou no Observador de 25-01-2023:

Sonae MC, dona dos hipermercados Modelo Continente, fechou 2022 com um volume de negócios de 5.978 milhões de euros, o que traduz uma subida de 11,5% face aos 5.362 milhões registados em 2021. É o valor mais elevado de sempre. 

Ou no Jornal i de 10-11-2022:


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Cada vez se torna mais premente a interrogação: Quem é mais afetado por isto? Ou seja, quem é que tem menos capacidade para fazer frente a estas dificuldades?

A resposta é, claro, as crianças. E, depois, os pobres.

Como nos diz Gonçalo M. Tavares, na sua coluna no Jornal de Notícias de 12-03-2023:


Mas há mais:


Bom, estes valores não surpreendem quando vemos a seguinte notícia no Expresso de 14 de Abril de 2023 que 
Desigualdade salarial nas grandes empresas quase duplicou. Remuneração dos gestores subiu 47% em 10 anos, a dos trabalhadores recuou 0,7%.
Ou que, no Expresso Economia de 14 de Abril de 2023

CEO do PSI ganham 36 vezes mais do que os seus trabalhadores. Pedro Soares dos Santos, da Jerónimo Martins, tem o maior fosso salarial, ganha 186 vezes o salário médio bruto dos trabalhadores da Jerónimo Martins. Na Sonae, o salário de 82 trabalhadores não cobre o de Cláudia Azevedo. Moura Martins ganhava na Mota-Engil 49 vezes mais do que trabalhadores. Miguel Stilwell faturou €1,8 milhões, cerca de 42 salários médios da EDP. No BCP é preciso somar 34 salários médios para atingir o de Miguel Maya.


Ao mesmo tempo que, no Porto Canal, se lê:

Metade da população portuguesa recebe um salário abaixo dos 1050 euros brutos. (...) Além disso, as mulheres ainda não chegam a esse valor, uma vez que em 2021 metade das mulheres recebia apenas cerca de 987 euros por mês.

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O dinheiro não nasce das árvores, nem cai do céu. Para uns ganharem, alguém tem de perder, como acabámos de ver. Mas, em concreto, quanta miséria se criou e se mantém, em particular entre as crianças, por causa desta situação?

Por acaso, até podemos responder a esta pergunta - no Barómetro da DECO PROTESTE (15-03-3023):

Cerca de três quartos (74%) das famílias enfrentam, mensalmente, dificuldades financeiras, sendo que 8% se encontram em situação crítica: têm dificuldade em pagar todas as despesas ditas essenciais (mobilidade, alimentação, saúde, habitação, lazer e educação). 

Aliás, segundo Luísa Loura, diretora da Pordata, em 2020: 

Sem os apoios sociais, 4, 4 milhões são pobres ou têm rendimentos abaixo do limiar da pobreza [554 euros mensais], o que passa para 1,9 milhões após as transferências sociais", explica Luísa Loura, diretora da Pordata.

Confirmado pelo primeiro-ministro na Assembleia da República.

Sobre as crianças, também podemos ter a resposta, vinda da própria ministra Ana Mendes Godinho do atual Governo. No Jornal de Notícias de 24-01-2023:

Em Gaia existem 4492 crianças em situação de pobreza extrema, afirmou a ministra do Trabalho e da Segurança Social, Ana Mendes Godinho (...) sublinhando que a nível nacional o número ascende às "170 mil".

Saliento que não se trata de pobreza simplesmente, é «pobreza extrema»!

E, para estas crianças, sair da pobreza é fácil? Não, não é. Em Portugal, demora em média 5 gerações, mais de 100 anos, como indica o Relatório da OCDE de 2018:


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Aqui, começa a impor-se uma nova pergunta: Qual o nome da ideologia que favorece uma situação como esta? A resposta é clara: Capitalismo (em todo o seu esplendor, diga-se de passagem!).

E quais as causas desta situação no nosso país? Na verdade, como disse atrás, só tínhamos que imitar as sociais-democracias do Norte! Porque riqueza produzimos e temos, como se viu. Porque não o fazemos?

Várias respostas surgem: a corrupção, a ganância, alguma desinformação, o desprezo dos dirigentes pela população em geral, etc. Ao que a população portuguesa vai respondendo, mas com um certo conformismo resignado (penso que se trata ainda de sombras longas do fascismo que não desapareceram).

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Mas não é só aqui que as crianças estão mal. Ainda esta semana, se soube que…

No Expresso de 11-03-2023:

“Já tivemos crianças de 11 anos aqui” - O alerta é dado pela equipa da maior urgência de pedopsiquiatria do país: no Hospital de Dona Estefânia, em Lisboa, são cada vez mais os jovens que tentam suicidar-se. Os números duplicaram em quatro anos, segundo Gonçalo Cordeiro Ferreira, o diretor da Pediatria Médica da unidade. 

Ou no Jornal de Notícias de 14-03-2023:

A violência nas escolas está a atingir proporções alarmantes, sendo que muito do bullying não chega sequer ao conhecimento dos professores, pais ou autoridades. Só aqueles em que o maltratado necessita de tratamento hospitalar. (...) Há evidências claras de que as escolas estão sobrecarregadas, o que leva a um mal-estar constante e se traduz num aumento de casos de bullying, automutilação e até tentativas de suicídio

Ou no Jornal de Notícias de 11-03-2023:

(…) acidentes rodoviários são a principal causa de morte entre os cinco e os 29 anos, (…) “A nossa geração mais jovem, se já não está a ir para o estrangeiro, está a morrer nas nossas estradas. (…)”

Ou no Público de 11-03-2023:

A invalidade de metadados (…) já destruiu dezenas de casos de pornografia infantil, tanto durante a investigação como na fase de julgamento. Quem o diz é Pedro Verdelho, director do Gabinete de Cibercrime, que coordena a actividade do Ministério Público na área da cibercriminalidade.

De notar que não é "A invalidade de metadados (...)", mas sim de "A lei dos metadados mal feita pelo Governo e pelo Parlamento (...)".

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Mas já chega de más notícias (e houve muitas que eliminei!). Vamos acabar com uma boa notícia: a Delta Cafés aderiu à campanha "Nem Mais Uma Palmada"!


domingo, fevereiro 12, 2023

«Uma via especial não é um privilégio»


Recordemos que 
«Em Gaia existem 4492 crianças em situação de pobreza extrema, afirmou a ministra do Trabalho e da Segurança Social, Ana Mendes Godinho (...) sublinhando que a nível nacional o número ascende às "170 mil".» (JN, 24.01.2023
Saliento que não é pobreza, é «pobreza extrema». Vejamos o que nos diz Inês Cardoso, Diretora do JN, 12.02.2023:

Uma via especial não é um privilégio

«Segundo dados da OCDE, em média em Portugal são necessárias cinco gerações para que crianças nascidas em famílias com dificuldades económicas alcancem o rendimento médio. As estatísticas das nossas universidades mostram bem as desigualdades sociais e a representatividade de jovens oriundos de meios desfavorecidos é ainda mais frágil nos chamados cursos de topo. Quase 75% dos estudantes de Medicina são filhos de pais que concluíram o Ensino Superior.

Em teoria, a escola é o melhor elevador social que conhecemos e aprendemos a acreditar num sistema que premeia o mérito, em que todos podem progredir com o seu trabalho. O que se comprova em sucessivos estudos é que essa progressão é lenta e o ensino tende a perpetuar diferenças sociais. Criar um contingente prioritário para alunos que beneficiam do escalão A de ação social, no acesso ao Ensino Superior, é por isso uma medida essencial para acelerar as mudanças e tentar reparar as avarias do elevador.

Haverá sempre quem diga, como já expressou o ex-ministro Nuno Crato, que "facilitar artificialmente a vida escolar dos jovens com dificuldades económicas não os beneficia". Em teoria, deveríamos ter recursos e medidas de apoio para os ajudar a entrar pela porta normal. Acontece que esses recursos não existem ou são manifestamente insuficientes. E acresce que mesmo com a maior eficácia da escola estes estudantes nunca estarão em pé de igualdade com os colegas.

Não se trata apenas de pensar em explicações e outros instrumentos que ajudam a atingir resultados. Há todo um mundo fora da escola que contribui para as aprendizagens ou, pelo contrário, as condiciona - com poder aquisitivo vêm livros, espetáculos, tecnologia, viagens e outras experiências que abrem horizontes e influenciam de forma difícil de determinar aquilo que se absorve na escola.

Como acontece com outros contingentes especiais, beneficiar deles não é um privilégio. É partir de um ponto no qual se está em desvantagem. Os contingentes existem para dar oportunidades a quem está habituado a não as ter. Não se dá nada sem mérito. Pelo contrário, corrige-se o facto de o mérito não bastar. Até ao dia, esperamos, em que a equidade não seja uma miragem e as vias especiais possam ser dispensadas.»