As ideias contam.
As ideias traduzem-se muitas vezes em atos.
O silêncio que responde a ideias violentas não é um sinal de
reprovação. É um sinal claro de apoio.
Num tempo em que está a deixar de ser vergonhoso defender
publicamente ideias violentas contra seres humanos, textos como este de
Fernanda Câncio são por demais importantes.
Subscrevo inteiramente todas as ideias aqui expressas.
Linchamentos Gentis e Outras Desventuras - Fernanda Câncio, Diário de Notícias, 24/07/2017
Não tinha qualquer intenção de escrever sobre Gentil
Martins; prefiro não perder tempo com fanáticos. E assim seria, se não me
tivesse dado conta de que as reações aos pronunciamentos do ex-bastonário numa
entrevista ao Expresso incluem colunas de opinião em que quem os criticou é
apelidado de "Gestapo", "Stasi", e "turba
linchadora", ou o atual bastonário não tivesse dito coisas que não podem
passar em branco.
Chamar Gestapo a alguém por se indignar com o facto de GM
ter chamado anormais e doentes aos homossexuais é uma justa homenagem ao
fanatismo do cirurgião pediatra: só a alguém igualmente incapaz de pensar fora
da fobia ocorreria usar o nome da polícia nazi, associada à morte de milhares
de homossexuais, para denominar os que se indignam por haver quem use em
relação a este grupo o mesmo tipo de terminologia que os nazis usaram. E quem
fala em "linchamento" de GM a propósito do que se considera ser a
reação furiosa "das redes sociais" tem o mau gosto de fazer de conta
que não sabe que linchamento, na acepção fatal do termo, é o que sucedeu a
miríades de homossexuais ao longo da história humana - e sucede ainda hoje,
como GM e os seus defensores não podem ignorar.
Porque, cabe relembrar, nunca ninguém foi exterminado ou
linchado por apelidar os homossexuais de "anormais" ou
"desviantes". Já quem mata e lincha homossexuais usa sempre esses
termos. Estamos entendidos sobre quem cala e persegue e lincha quem e quanto ao
potencial danoso das palavras de GM? Basta aliás, para perceber o que está em
causa, questionar se algum dos que tanto defendem "o direito de
opinião" de GM o faria se este, em vez de chamar "anomalia" à
homossexualidade, tivesse dito o mesmo dos judeus - também durante séculos
considerados "errados" e "doentios". Quem destas pessoas
viria nesse caso a público invectivar os críticos de GM por exigirem um
pronunciamento da Ordem em vez de se limitarem a "refutar" a sua
"opinião"? Deixemo-nos de tergiversações: quem defende GM e aquilo
que classifica como "o seu direito a expressar opiniões" apenas o faz
por considerar aceitável a que expressou. Ou não se encarniçaria contra os que
opinaram sobre a "opinião" de GM considerando-a ela sim anómala do
ponto de vista científico e um desvio dos seus deveres enquanto médico.
É muito simples: foi como médico que GM deu a entrevista. A
Ordem dos Médicos tem um mandato legal, público, para certificar que os
profissionais por ela autorizados agem de acordo com as regras deontológicas e
científicas em vigor; que não praticam o charlatanismo ou difundem falsidades
científicas e ideias sobre saúde contrárias às legis artis e prejudiciais para a comunidade. Não é uma opção da
Ordem; é uma obrigação. E tal como abriu um procedimento em relação a Manuel
Pinto Coelho por este ter dado uma entrevista (também ao Expresso) a dizer que
se deve beber água do mar e que usar protetor solar é um erro, não pode não o
fazer face a um médico que qualifica a homossexualidade como anomalia, portanto
doença ou afeção, e "desvio de personalidade", pronunciando-se
publicamente com termos que pertencem à especialidade de psiquiatria, que não é
a sua, e contra o consenso científico desta. Aliás o Conselho Nacional da OM
fez um comunicado público, há pouco mais de um mês, a acusar Pinto Coelho de
"defender práticas que podem constituir um atentado à saúde"
(curioso, não se deu por qualquer movimento de defesa da "liberdade de
expressão" deste clínico), acusação que o atual bastonário, Miguel Guimarães,
repetiu numa entrevista ao Expresso anteontem. Mas, questionado sobre se o que
GM disse é igualmente um atentado à saúde pública, foi muito mais cauteloso:
"É uma questão diferente. (...) São [declarações] más para um grupo de
pessoas que podem sentir-se segregadas". Para o bastonário, pelos vistos,
o facto de as afirmações do médico GM não terem fundamento científico, serem
discriminatórias e validarem discriminações não é um problema de saúde pública,
é "de um grupo de pessoas". Ficamos a saber que para este sucessor de
GM algo que afeta "só" os homossexuais não é um problema da
comunidade.
A ideia, que tantos martelam nos media, de que é "preciso" defender uma "liberdade de
expressão" entendida como a liberdade de um discurso discriminatório que
atente gratuitamente contra a dignidade de indivíduos ou grupos não é só uma
ideia estúpida e desonesta nos tempos em que esse discurso domina, com toda a
virulência, as caixas de comentários e as tais "redes sociais". É uma
ideia contrariada pela própria Constituição e pela Carta Europeia dos Direitos
Fundamentais, pactos escritos da nossa comunidade que valorizam mais (e bem) a
dignidade humana - portanto a liberdade de ser - que a liberdade de dizer.
Porque o nosso princípio básico civilizacional é o respeito mútuo, a ideia de
que o outro vale tanto como eu, tem os mesmos direitos, é igual a mim. Não
tenho por isso o direito de o agredir a não ser em legítima defesa; não tenho
por que sentir-me agredida pela sua mera existência. Esse sentimento, o de alguém
se sentir ameaçado pelo que considera outro, é que é uma anomalia. Alimentá-lo,
credibilizá-lo e tentar lucrar com ele é a negação de tudo o que estamos a
tentar construir desde Auschwitz.
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