sábado, julho 01, 2017

Leituras da infância e da juventude

Causa-me perplexidade o facto de não conseguir reler hoje o que no passado li com exaltação. Como é possível que um determinado livro, que já esteve carregado de beleza, de significado e de implicações para a minha vida, hoje me diga tão pouco?

Podem ter sido as muitas releituras feitas que foram desgastando a obra? Nalguns casos talvez sim, mas não abrange todos. Há livros que continuo a reler com prazer sempre renovado; e outros que não consigo ler sequer uma segunda vez, apesar do enorme prazer da primeira leitura.

Uma hipótese plausível é a de o livro ter uma qualidade moderada. Na altura em que o li da primeira vez, talvez ele estivesse a ter um grande sucesso e que, depois, ao assentar a poeira, se revelasse ser menos bom. Ou talvez fosse de um género ou estilo que me emocionou particularmente na altura e agora já não. Ou ainda por tratar de assuntos que, então, eram uma novidade para mim mas que, atualmente, se me tornaram banais.

Curioso. Enquanto escrevo, apercebo-me que me sinto infinitamente grato a esses livros pertencentes, na sua maioria, a uma literatura mais modesta, menos prestigiada e mais simples. Porque sinto isso? Penso que possivelmente foram eles que, nesses primeiros anos de leitura, me abriram perspetivas e possibilidades de vidas insuspeitadas (a Ficção Científica), que me sensibilizaram para a complexidade das motivações humanas e para a justiça (o Policial), que me alertaram para os valores da honra e da coragem (o Western e a Aventura).

Na altura, ao ler estes livros, encontrava por vezes grandes escritores que ainda hoje releio com satisfação. Recordo na ficção científica Ray Bradbury(*), Doris Lessing, Philip K. Dick e Ursula K. Le Guin. No policial, G. K. Chesterton, Raymond Chandler, Edgar Allan Poe e Dashiel Hammett. No western, Jack Schaefer, John Steinbeck e Jack London. Na aventura, Robert Louis Stevenson, Jonathan Swift e Daniel Defoe.

Quando somos mais novos e estamos mergulhados no fluxo dos acontecimentos do dia-a-dia, há poucas possibilidades de conseguir fazer uma reflexão aprofundada sobre a vida. Aqueles livros tiveram o poder de desencadear múltiplos sentidos da vida, todos e cada um, sempre importantes para mim, para aquilo que sou hoje. Graças a eles, vivo numa liberdade mais ampla, em que o eixo central da minha vida se baseia muito mais no valor e no propósito da existência (ambos sempre a atualizarem-se, muito ainda devido aos livros) do que em ganhos materiais.

Finalmente, foi a sua leitura que, sem dúvida, me abriu as vias por onde agora respira uma literatura mais exigente, mais rica e, portanto, mais gratificante (da qual, na época, eu pouco percebia e não gostava assim tanto).


Por isso, sinto-me agradecido. Aliás, no meu espírito, ler confunde-se sempre com agradecer quando as palavras lidas se transmudam num rio interior que flui, expandindo-se para algo maior e melhor do que antes. Porque agradecer é acolher e reconhecer a dádiva. E a leitura é isto mesmo: acolher e reconhecer.


(*) A foto foi retirada deste excelente blogue sobre a saudosa Coleção Argonauta.

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