Quando era mais novo, ao ser arrebatado por um livro,
tornava-me num seu campeão. Um livro que me iluminasse tinha também de verter a
sua luz sobre aquelas pessoas de quem eu mais gostava. Não descansava enquanto
não explicava a um amigo ou a uma amiga do que tratava o livro, porque é que
era absolutamente fundamental lê-lo; e, não satisfeito com isso, ainda perorava
sobre como e onde o livro iria mudar a sua vida. Um cansaço para mim, claro,
mas sobretudo uma violência para ele ou ela.
A violência é evidente e indesculpável – desafortunada a
pessoa que tinha o azar de ser apanhada por mim!
Quanto ao cansaço, ele advinha de se tratar quase sempre de
um esforço inglório. Inglório em várias frentes. Primeiro, porque,
estranhamente para mim, a pessoa não ficava com a mínima vontade de ir ler o
livro, mesmo que eu, emprestando-o, lhe poupasse o trabalho e a despesa de o
adquirir. Depois, porque a pessoa não só não me agradecia o esforço, como
demostrava uma certa impaciência para comigo… e, lembro-me bem, para meu
espanto, muitas vezes chegava a ficar zangada comigo.
Confesso que isto me magoava. Precisei de alguns anos para
deixar de ser o paladino obstinado dos livros que eu achava maravilhosos, a fim
de não estragar irremediavelmente a amizade que me unia a essas pessoas. Bem… e,
no fundo, para manter uma vaga esperança de que, talvez um dia, elas acabassem
por pegar nessa obra que tão importante fora para mim.
E tantas foram realmente importantes! Porque a minha personalidade
tem sido, em grande parte, modelada (e moderada) pelas leituras que fui fazendo
ao longo da vida. Fui crescendo e modificando-me por via da extraordinária
influência que essas obras foram tendo sobre mim; influência essa que, ainda
hoje, persiste com uma intensa luminosidade. Por conseguinte, o meu entusiasmo
por esses livros não era de todo superficial nem passageiro.
Apenas alguns exemplos: Cântico Final, de Vergílio
Ferreira. O Amor em Visita, de Herberto Helder. Arco do Triunfo e Desenraizados,
de Erich Maria Remarque. A Peste, de Albert Camus. O Principezinho, de
Antoine de Saint-Exupéry. O Budismo Zen, de Alan Watts. E ainda muitos mais –
eu tinha-os escrito aqui, mas apercebi-me que a lista se ia estendendo
indefinidamente, pelo que optei por deixar estes que foram os primeiros que me
vieram ao espírito.
Evoco ainda a memória da mãe de um dos meus amigos que me
recebia e me apresentava a outros como sendo “um menino muito lido”! Só tardiamente
percebi que, para além de uma certa ternura e de um grande sentido de humor,
esta sempre amabilíssima senhora revelava uma profunda sabedoria (que, talvez,
se possa estender a todos nós que somos Leitores): possivelmente não era mesmo eu
que lia os livros, mas eram eles que me liam a mim, favorecendo assim o despertar
de novas trajetórias na minha vida e de ignoradas sensibilidades na minha
pessoa.
The Metropolitan Museum of Art, Annunciation Triptych (Merode Altarpiece)
Workshop of Robert Campin (1427-1432)
- Fonte
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