«Qual é, na vossa perspetiva, o Leitor Ideal para a vossa
obra?» – Esta é uma pergunta que por vezes dirijo a alguns escritores.
Reconheço que a questão, posta assim de chofre, não é fácil
de ser respondida. Muitas vezes, aliás, eles pensam que me estou a referir ao
leitor que têm em mente quando escrevem. Mas não, o que eu pretendo saber é
quais as características que eles sonham para um Leitor Ideal da sua obra (já
escrita).
Por que razão isto me interessa? Em algumas áreas da minha vida,
apetece-me a excelência que, naturalmente, nunca chego a encontrar. Só que o
caminho até esse horizonte indefinido é-me sempre festivo. Portanto, as ideias
para esse perfil de Leitor Ideal são-me sempre muito bem-vindas.
Porque a minha aspiração é na realidade libertar os
múltiplos prazeres que a leitura me pode trazer, sejam eles entretenimento,
aprendizagens, vivências improváveis, construção de mundos interiores,
alargamento da rede de relações interiores, cumplicidades com o autor, ou experiências
estéticas o mais diversas possíveis.
No entanto, talvez seja possível chegar a uma certa
simplicidade: o Leitor Ideal acabará talvez por ser aquele que lê genuinamente,
aquele que se coloca a si mesmo todo inteiro na experiência da leitura, de cada
vez sempre única, sempre renovada.
E quanto aos escritores? Será este o Leitor que eles idealizam
para a sua obra?
Imagino um escritor a desejar que o seu Leitor Ideal fosse
aquele para quem a leitura da sua obra tivesse siso tão devastadora, tão profunda
e tão marcante que ela o teria transformado em alguém completamente diferente a
iniciar uma vida também ela completamente nova.
… ou alguém que colecionasse todos os exemplares, todas as
edições e todas as traduções do livro.
… ou aquele cuja paixão pela obra o levasse a traduzi-la
para todas as línguas onde ainda não houvesse tradução.
… ou o que não repousasse enquanto não tivesse decorado o
livro todo, palavra por palavra, frase por frase (se possível, até movido pela
evocação de Fahrenheit 451, de Ray
Bradbury).
… ou o que, ao lê-lo vezes sem fim, palavra a palavra, fosse
escrevendo e juntando outras frases, acabando por criar outros e inumeráveis
livros a partir daquele.
… ou o que se apaixonasse por todas as pessoas parecidas com
as personagens do livro, mas só enquanto elas não o tivessem lido. Assim,
poderia viver em toda a sua pureza histórias alternativas, podendo manter-se
sempre dentro da história do livro.
… ou o que, nas suas viagens, entrasse em todas as
bibliotecas, requisitando essa obra, de forma a associar pelo menos uma parte
do livro a cada um desses lugares visitados. Ao mesmo tempo, deixaria registado
o testemunho da passagem de um leitor daquela obra.
… ou o que, nas suas múltiplas releituras, descobrisse no
livro uma fonte sempre inesgotável de novos deslumbramentos.
… ou aquele que morresse, não como Ícaro apenas por ter
atingido a altura mais chamejante, mas como Buda por ter alcançado, com esse
livro, o nirvana e a completa abundância num outro nível de existência. Melhor:
como um Bodhisattva que, podendo atingir o nirvana, resolvesse voltar ao
sofrimento de ler outros livros, agora para ajudar outros escritores e leitores
a encontrarem a capacidade de criar uma experiência ilimitada e infinita de
leitura….
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