sexta-feira, julho 28, 2017

O Leitor Ideal

«Qual é, na vossa perspetiva, o Leitor Ideal para a vossa obra?» – Esta é uma pergunta que por vezes dirijo a alguns escritores.

Reconheço que a questão, posta assim de chofre, não é fácil de ser respondida. Muitas vezes, aliás, eles pensam que me estou a referir ao leitor que têm em mente quando escrevem. Mas não, o que eu pretendo saber é quais as características que eles sonham para um Leitor Ideal da sua obra (já escrita).

Por que razão isto me interessa? Em algumas áreas da minha vida, apetece-me a excelência que, naturalmente, nunca chego a encontrar. Só que o caminho até esse horizonte indefinido é-me sempre festivo. Portanto, as ideias para esse perfil de Leitor Ideal são-me sempre muito bem-vindas.

Porque a minha aspiração é na realidade libertar os múltiplos prazeres que a leitura me pode trazer, sejam eles entretenimento, aprendizagens, vivências improváveis, construção de mundos interiores, alargamento da rede de relações interiores, cumplicidades com o autor, ou experiências estéticas o mais diversas possíveis.

No entanto, talvez seja possível chegar a uma certa simplicidade: o Leitor Ideal acabará talvez por ser aquele que lê genuinamente, aquele que se coloca a si mesmo todo inteiro na experiência da leitura, de cada vez sempre única, sempre renovada.

E quanto aos escritores? Será este o Leitor que eles idealizam para a sua obra?

Imagino um escritor a desejar que o seu Leitor Ideal fosse aquele para quem a leitura da sua obra tivesse siso tão devastadora, tão profunda e tão marcante que ela o teria transformado em alguém completamente diferente a iniciar uma vida também ela completamente nova.

… ou alguém que colecionasse todos os exemplares, todas as edições e todas as traduções do livro.

… ou aquele cuja paixão pela obra o levasse a traduzi-la para todas as línguas onde ainda não houvesse tradução.

… ou o que não repousasse enquanto não tivesse decorado o livro todo, palavra por palavra, frase por frase (se possível, até movido pela evocação de Fahrenheit 451, de Ray Bradbury).

… ou o que, ao lê-lo vezes sem fim, palavra a palavra, fosse escrevendo e juntando outras frases, acabando por criar outros e inumeráveis livros a partir daquele.

… ou o que se apaixonasse por todas as pessoas parecidas com as personagens do livro, mas só enquanto elas não o tivessem lido. Assim, poderia viver em toda a sua pureza histórias alternativas, podendo manter-se sempre dentro da história do livro.

… ou o que, nas suas viagens, entrasse em todas as bibliotecas, requisitando essa obra, de forma a associar pelo menos uma parte do livro a cada um desses lugares visitados. Ao mesmo tempo, deixaria registado o testemunho da passagem de um leitor daquela obra.

… ou o que, nas suas múltiplas releituras, descobrisse no livro uma fonte sempre inesgotável de novos deslumbramentos.


… ou aquele que morresse, não como Ícaro apenas por ter atingido a altura mais chamejante, mas como Buda por ter alcançado, com esse livro, o nirvana e a completa abundância num outro nível de existência. Melhor: como um Bodhisattva que, podendo atingir o nirvana, resolvesse voltar ao sofrimento de ler outros livros, agora para ajudar outros escritores e leitores a encontrarem a capacidade de criar uma experiência ilimitada e infinita de leitura….

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