domingo, maio 14, 2006

Calígula, de Camus

Li uma primeira vez e não gostei. Com a idade vai-me sendo cada vez mais insuportável a violência. Mesmo que seja para mostrar como ela é destruidora, pensei eu.
Passados uns dias em que não conseguia apagar da memória a leitura feita, já perplexo por dela não me conseguir libertar, voltei a ler esta peça de teatro. De repente, comecei a compreender e foi um fascínio. Aqui vai a minha leitura:

Calígula, aparentemente apanhado pelo desamparo sentido pela morte da sua amante e irmã Drusilla, começa por optar deixar de sentir: "(...) Quantas histórias por causa da morte de uma mulher! Não, não é isso. Suponho recordar-me, é verdade, de ter morrido há alguns dias uma mulher que amava. Mas, o que é o amor? Pouca coisa. (...)"
Mas a situação não melhora com essa decisão: "(...) Mas sinto que estão a crescer em mim seres sem nome. Que farei contra eles? (...)"
Para se libertar da dor recorre ao exercício do poder; aliás, ele é tomado por uma sede absoluta de poder!
Assim ele exerce-o, primeiro contra os outros. Isso não lhe traz problemas de maior porque, ao perder a ligação com as suas emoções mais genuínas, perdeu a capacidade de empatizar com esses outros, de sentir compaixão pelos seus sofrimentos.
Em segundo lugar, também contra si próprio. Por exemplo, uma das raríssimas decisões "boas" que toma é salvar aquele que ele sabe que irá ser o seu assassino. Com 2 objectivos:
1º, Exibir o quão vasto é o seu poder, ainda maior que o dos deuses: "(...) Admira o meu poder: os próprios deuses não podem dar a inocência sem antes terem punido.(...)"
2º, Entregar-se por completo, com volúpia mesmo, à sua imensa autodestrutividade, ao seu ódio por si próprio. O que o faz sentir-se tão próximo do seu assassino, é que ambos têm em comum a repulsa em relação à sua pessoa.
Em toda a peça perpassa esta terrível atracção que ele sente pela morte, dos outros e da sua: "É curioso! Quando não mato, sinto-me só!"
Perturbante também é a assustadora ambiguidade interior das duas personagens mais nobres da peça face a Calígula, face ao seu poder absoluto:
Cherea: "(...) e porque se não pode gostar, noutrém, daquilo que recalcamos em nós."
Cipião: "(...) Mas há qualquer coisa em mim que se parece com ele.(...) sofro também do que ele sofre. (...)"
O crime de Calígula é exercer a sua liberdade abusando injustamente do seu poder contra os outros.Daí que "Tenho também [contra mim] a lealdade e a coragem daqueles que desejam ser felizes."

A peça claro que vai muito além do que aqui resumo brevemente, resumo aliás "contaminado" por um olhar particular, o meu.

Aqui fica o que Camus escreveu sobre esta sua peça.

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