quinta-feira, maio 11, 2006

O Mito de Sísifo, de Camus

“Não tenho muitas opiniões. No fim de uma vida, o homem apercebe-se de que passou anos a assegurar-se de uma só verdade. Mas uma só, se é evidente, basta à conduta de uma existência.”


(Recordo-me de ter tido, na juventude, uma imensa fraternidade com Camus. Todos estes anos em que andei esquecido dele e sem nunca imaginar que a minha vida ia correndo pelas páginas dos seus livros! Por isso, seria falso afirmar que estou a relê-los. Não, estou a lê-los pela 1ª vez. Com paixão.)



Tu não compreendes bem o que se passa à tua volta. Não falo de atribuir rótulos simplistas a alguns factos arbitrariamente seleccionados da realidade e sobre os quais inventas um nexo qualquer : “a distância constante entre aquilo que imaginamos saber e aquilo que realmente sabemos”. Distância que existe até em relação a ti mesmo. Nem o teu corpo conheces: ele está volta e meia a apanhar-te de surpresa, seja com doenças, falhas ou apetites.

Não, falo de compreender realmente. Tu tentas e não consegues. Apercebes-te então do estrangeiro que tu és. Sem nostalgia (porque o teu passado, reconhece-lo agora, é um amontoado de ilusões, ou seja, não existiu realmente) e sem sonhos (porque o futuro deixou de ter sentido).

Saber, saber mesmo, visceralmente, que podes morrer em qualquer momento, revela como são vãs todas as ilusões que regem a tua vida. Assim, da resistência à compreensão que o mundo te impõe face ao teu desejo sôfrego de clareza e de sentido, explode o absurdo: “o absurdo nasce deste confronto entre o chamamento humano e o desrazoável silêncio do mundo”.

Este absurdo mantém-se desde que não te familiarizes com a ausência de clareza, desde que não desistas de procurar um sentido inexistente. Ou seja, ele desaparece se deixares de tentar percebê-lo; por outras palavras, se deixares de te revoltar.

Mas para quê o absurdo? Para sermos homens e mulheres inteiros e lúcidos, para levarmos uma vida exigente e autêntica, nem ausente nem emprestada. Ao desafio do que me toca ou do que embate em mim, eu responderei com a minha vontade de compreender, fundando depois a minha acção sobre o que honestamente eu aprendi.

Os rótulos, bem como as ilusões que os fundamentam, tornam a vida muito mais estreita e mesquinha. Os “sentidos”, que me esforço por atribuir a tudo, servem apenas para afunilar a minha liberdade de agir, para viver adormecido, numa palavra. Assim, a vivência do absurdo permite que a realidade me chegue com toda a sua irredutível complexidade e consequente riqueza.

Se o absurdo põe em evidência a total equivalência das acções, então interessa menos a qualidade do que vivo, passando a pesar a quantidade. Não se trata então de quantidade de acontecimentos (exteriores a mim) mas de quantidade de experiências (interiores a mim). A palavra-chave aqui não é frenesi, mas sim lucidez.


“Se ele deve reencontrar uma noite, que seja antes a do desespero que fica lúcido, noite polar, véspera do espírito, de onde se levantará talvez essa claridade branca e intacta que desenha cada objecto na luz da inteligência.”

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