sábado, janeiro 16, 2016

Arte Poética, de José Luís Peixoto

O meu amigo Luís Nogueira, poeta autor do blogue ENE COISAS, disponibilizou-me este texto fabuloso:

"Rui Diniz Monteiro, lembrei-me de ti ao ler este poema:

arte poética

o poema não tem mais que o som do seu sentido,

a letra p não é a primeira letra da palavra poema,

o poema é esculpido de sentidos e essa é a sua forma,

poema não se lê poema, lê-se pão ou flor, lê-se erva

fresca e os teus lábios, lê-se sorriso estendido em mil

árvores ou céu de punhais, ameaça, lê-se medo e procura

de cegos, lê-se mão de criança ou tu, mãe, que dormes

e me fizeste nascer de ti para ser palavras que não

se escrevem, Lê-se país e mar e céu esquecido e

memória, lê-se silêncio, sim tantas vezes, poema lê-se silêncio,

lugar que não se diz e que significa, silêncio do teu

olhar doce de menina, silêncio ao domingo entre as conversas,

silêncio depois de um beijo ou de uma flor desmedida, silêncio

de ti, pai, que morreste em tudo para só existires nesse poema

calado, quem o pode negar?, que escreves sempre e sempre, em

segredo, dentro de mim e dentro de todos os que te sofrem.

o poema não é esta caneta de tinta preta, não é esta voz,

a letra p não é a primeira letra da palavra poema,

o poema é quando eu podia dormir à tarde nas férias

do verão e o sol entrava pela janela, o poema é onde eu

fui feliz e onde eu morri tanto, o poema é quando eu não

conhecia a palavra poema, quando eu não conhecia a

letra p e comia torradas feitas no lume da cozinha do

quintal, o poema é aqui, quando levanto o olhar do papel

e deixo as minhas mãos tocarem-te, quando sei, sem rimas

e sem metáforas, que te amo, o poema será quando as crianças

e os pássaros se rebelarem e, até lá, irá sendo sempre tudo.

o poema sabe, o poema conhece-se e, a si próprio, nunca se chama

poema, a si próprio, nunca se escreve com p, o poema dentro de

si é perfume e é fumo, é um menino que corre num pomar para

abraçar o seu pai, é a exaustão e a liberdade sentida, é tudo

o que quero aprender se o que quero aprender é tudo,

é o teu olhar e o que imagino dele, é solidão e arrependimento,

não são bibliotecas a arder de versos contados porque isso são

bibliotecas a arder de versos contados e não é o poema, não é a

raiz de uma palavra que julgamos conhecer porque só podemos

conhecer o que possuímos e não possuímos nada, não é um

torrão de terra a cantar hinos e a estender muralhas entre

os versos e o mundo, o poema não é a palavra poema

porque a palavra poema é um palavra, o poema é a

carne salgada por dentro, é um olhar perdido na noite sobre

os telhados na hora em que todos dormem, é a última

lembrança de um afogado, é um pesadelo, uma angústia, esperança.

o poema não tem estrofes, tem corpo, o poema não tem versos,

tem sangue, o poema não se escreve com letras, escreve-se

com grãos de areia e beijos, pétalas e momentos, gritos e

incertezas, a letra p não é a primeira letra da palavra poema,

a palavra poema existe para não ser escrita como eu existo

para não ser escrito, para não ser entendido, nem sequer por

mim próprio, ainda que o meu sentido esteja em todos os lugares

onde sou, o poema sou eu, as minhas mãos nos teus cabelos,

o poema é o meu rosto, que não vejo, e que existe porque me

olhas, o poema é o teu rosto, eu, eu não sei escrever a

palavra poema, eu, eu só sei escrever o seu sentido.


José Luís Peixoto, 'A Criança em Ruínas'"

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