sexta-feira, outubro 29, 2021

Não aprovação do Orçamento de Estado para 2022


Vamos supor por uns momentos que António Costa (AC) não é estúpido.

Um homem que saiu do Governo de Sócrates antes dos escândalos que o abalaram (passando estranhamente de ministro para presidente de câmara, é certo que de Lisboa); que negociou brilhantemente para unir a esquerda a fim de governar (note-se, depois de ter perdido as eleições), algo que nunca antes tinha sido conseguido por ninguém; que manipulou sempre o Parlamento para que ele nunca fizesse algo radicalmente contra a sua vontade (lembro o aumento dos professores em que AC levou o PSD a recuar atabalhoadamente; ou quando fez com que o PSD propusesse e aprovasse uma regra que evitou a sua ida frequente à Assembleia da República); que tem vindo a anular o peso dos partidos à sua esquerda no eleitorado; que “secou” a oposição por parte do PSD; etc.

Bom, proponho que um homem destes pode ser considerado sem favor um génio político (que é o que eu acho que ele realmente é – e a História há de lhe fazer justiça).

Sendo assim, várias interrogações se me levantam:

Porque é que Passos Coelho deu, por exemplo, a vice-presidência do seu governo ao partido à sua direita e AC nunca deu um lugar que fosse no seu governo a nenhum dos partidos à sua esquerda (por exemplo, os ministérios da Cultura ou do Ambiente; ou uma Secretaria de Estado da Cidadania e a Igualdade, ou do Património Cultural)?

Porque é que, nos últimos meses, AC se recusou terminantemente a remodelar o governo, mesmo sabendo que essa era a vontade da maioria dos eleitores portugueses?

Porque é que, desde as últimas eleições legislativas (em que ele não teve a maioria absoluta que desejava), ele tem vindo a insultar cirurgicamente o principal líder da oposição e o Bloco de Esquerda, e a humilhar o PCP, alienando a sua boa vontade?

Porque é que ele foi intransigente e não aceitou o suficiente do PCP e BE (cujas propostas me pareceram muito razoáveis - principalmente justas -, nada radicais, até oportunas dado que temos este ano um pouco de folga orçamental para as aplicar) de modo a eles poderem salvar a sua face ao abster-se? Colocando as suas cartas de forma a deixar o PCP e o BE numa "no-win situation": o que quer que eles fizessem, ficariam a perder (e, nomeadamente, a perder votos, como se tem vindo a verificar nos últimos anos)? E, pelo contrário, passou sempre a mensagem de que a intransigência estava do lado do BE e do PCP, quando todos sabemos que para haver teimosia tem de haver dois teimosos, não basta um só? 

Para finalizar: como é que este génio político, mestre de negociações impossíveis, fracassa totalmente na aprovação do Orçamento, chegando ao ponto de não ter, no Parlamento, nenhum partido além do seu a votá-lo favoravelmente?

A resposta é: não foi um fracasso! Obedeceu antes a uma estratégia cuidadosamente pensada, planeada e executada, para chegarmos a eleições antecipadas onde os partidos à esquerda são vistos como os “maus da fita” (quando não lhes foi dada hipótese nenhuma de proceder de modo diferente) e os partidos à direita estão envolvidos em lutas fratricidas. Ou seja, o cenário ideal para alcançar a tão desejada maioria absoluta.

Cereja em cima do bolo: quer ganhe, quer perca as eleições (cenário absolutamente improvável), AC ganha sempre porque, se perder, a culpa terá sido sempre dos outros e não sua.

Há apenas uma carta que ele não controla totalmente, que é o Presidente da República. Daqui pode vir uma surpresa que estrague o planeado (eleições, contra um BE e um PCP enfraquecidos, e com o PSD em lutas intestinas). Mas atendendo a que Marcelo tem contas antigas a ajustar com o PSD (e tem-no feito sempre), pode ser que nada aconteça de surpreendente. Mas nunca se sabe... 

O certo é que António Costa é um homem muito inteligente, que ouve os outros (é inverosímil acreditar que tudo isto venha só da cabeça dele, deve ter "think tanks" que o aconselham, e ele ouve-os realmente, muito provavelmente sem seguir acriticamente tudo o que eles lhe dizem) e que é um autêntico mestre de xadrez (que antecipa muitas jogadas à frente e sabe bem aproveitar-se da ingenuidade e dos passos em falso dos adversários).

sexta-feira, outubro 15, 2021

Aproveitando para esclarecer alguns lugares-comuns

 


Um conhecido meu enviou-me a última crónica de Miguel Sousa Tavares, "O Dinheiro", de 09/10/2021, publicada no Expresso. Para eu lhe dar a minha opinião.

Esta foi a minha resposta que eu lhe enviei (omito aqui qualquer referência identificativa, para garantir a sua total privacidade):


"Meu caro,

Muito obrigado pela sua atenção. Confesso-lhe que foi muito educativa esta leitura.

Não se assuste com o que vou dizer agora: acredita que desde há uns bons 20 anos que eu me recuso a ler ou a ouvir o que quer que seja do Miguel Sousa Tavares? Porquê? Porque acho-o uma pessoa muito pouco séria, muito pouco informada e um grande manipulador de emoções.

Assim, na verdade, recebi este seu mail como uma bela oportunidade para verificar se ele entretanto mudou ou continua na mesma (ou, quem sabe?, terá ficado pior).

Foi, portanto, com muita curiosidade e muito interesse que li este artigo “O Dinheiro”, publicado no Expresso de 9/10/2021.

É certo que ele diz aqui algumas (poucas) coisas que não me parecem incorretas: por exemplo, sobre os benefícios da social-democracia, com o que concordo genericamente.

Mas, ao mesmo tempo, diz verdadeiras barbaridades. Que passo a discriminar.


«O dinheiro (…) destrói casais, afasta irmãos, estilhaça famílias, espalha o ódio e a inveja onde antes reinava uma harmonia, talvez pobre, mas pacífica.»

O quê??????

A pobreza pode levar a tudo menos a harmonia e a paz! Pelo contrário, facilita por demais uma extrema violência. Só para dar um exemplo, segundo o estudo "Geração XXI" que já referi várias vezes nas minhas conversas, os 10%, repito, 10% das crianças (75% sofrem maus-tratos ditos “normais”) que são realmente maltratadas com extrema violência (são vítimas de sovas com objetos duros, de chicotadas com cintos, de queimaduras infligidas com água a ferver ou com fogões ligados, etc.) pertencem a famílias mais pobres. Onde vê Miguel Sousa Tavares a harmonia e a paz no meio da pobreza? Só se for nos manuais de propaganda do Estado Novo.


«Certos povos do Norte, de tradição luterana, temem o dinheiro e o seu poder nefasto sobre as frágeis almas humanas. Desconfiam das grandes fortunas, taxam-nas com impostos, perseguem-nas com uma crítica social (…) Mas ai dos ricos desses países do Norte que se atrevam a fugir ao Fisco, a refugiar-se em offshores, (…)»

O quê????!!!!

Mas alguns desses países ricos do Norte são eles próprios uma certa forma de offshores: por isso é que a maior parte das nossas empresas de topo (do PSI-20) não pagam impostos aqui em Portugal e vão pagá-los, por exemplo, à Holanda. Isto é, nós pagamos o que compramos e são os outros (os tais do Norte, bonzinhos e honestos, mas muito pouco solidários) que beneficiam dos impostos aplicados ao nosso dinheiro!


«(…) aqui quisemos acabar com os ricos, (…) e, sim, conseguimos acabar com os ricos, (...)»

O quê???????!!!!!!!!

Mas como é que acabaram os ricos? Será que o Miguel Sousa Tavares não sabe dos milhares de milionários que existem hoje em Portugal (mais de 136.000, com cerca de 19.000 a terem surgido em 2020, todos «com uma riqueza avaliada acima de um milhão de dólares», segundo o Jornal de Negócios de 22 de junho de 2021)?

No nosso país que é destacadamente o pior da Europa em desigualdade associada a graves problemas sociais e de saúde, com um fosso gigantesco entre os muito ricos e os pobres (ver gráfico no topo, em que pior do que nós só os Estados Unidos - e isto ainda antes da pandemia!). Duvido muito que o jornalista Miguel Sousa Tavares não saiba disto tudo.

E quando dá o exemplo de João Rendeiro, será que ele não se apercebe da contradição em que cai ao falar precisamente de um dos muito ricos que, até 2008, nunca foi incomodado por ninguém enquanto ia aumentando a sua fortuna?


Enfim, ideias confusas, informação falsa, contradições, tentativas de humor completamente falhadas e sem graça, passadismo – a ir buscar coisas de há 50 anos, hoje, que temos um mundo que nada tem a ver com aquele que ele recorda…

... e mal, pois, por exemplo, a história que ele conta do Otelo como sendo verdadeira é uma daquelas que já foi recontada milhares de vezes tendo como protagonistas nacionais e estrangeiros, como o Álvaro Cunhal, o Mário Soares, até Ronald Reagan, e tantos outros no lugar de Otelo! Veja-se este excelente artigo absolutamente esclarecedor sobre este assunto no Diário de Notícias de 01/08/2021, de Rogério Casanova:

Só não fico estupefacto pelo Expresso ter nos seus quadros Miguel Sousa Tavares e estar a pagar-lhe para ele escrever estas enormidades, porque o próprio Expresso (que eu também já deixei de ler desde há uns 15 anos) se tornou um jornal de muito, muito baixa qualidade.

Não tenho, portanto, razões para mudar a minha decisão de não voltar a ler ou ouvir Miguel Sousa Tavares. Mas muito obrigado à mesma, porque me permitiu verificar se a minha ideia acerca dele já estaria desatualizada. Não está.

Um forte abraço, muito obrigado mais uma vez e votos de um ótimo fim de semana!

Rui"

terça-feira, agosto 31, 2021

Otelo Saraiva de Carvalho

 


Lembro Otelo Saraiva de Carvalho, por fazer hoje 85 anos que nasceu para, alguns anos mais tarde, planear e liderar o movimento que nos iria libertar da ditadura, a 25 de Abril de 1974.

Eu não esqueço.

segunda-feira, agosto 02, 2021

José Afonso - Traz outro Amigo Também


Dada a educação muito restritiva dada pelo meu pai, foi pela leitura e pela música que aprendi como me relacionar com o mundo. Talvez por isso, houve três grandes sonhos na minha vida: o de uma sociedade fraterna que o 25 de Abril prometia, o de uma escola para expandir humanidade e comunidade, e o de uma relação afetiva profunda com alguém. Este último cumpriu-se. Quanto aos outros dois, vi-os desmoronarem-se completamente. Acho que nunca conseguirei superar isso. Até porque não sei o que posso fazer para, pelo menos, evitar que o desastre seja completo.

José Afonso - Traz Outro Amigo Também: um documentário imperdível a comemorar os 92 anos do seu nascimento.

Como com tudo o que se relaciona com o 25 de Abril e com as pessoas que o fizeram, vi largas partes deste documentário a chorar. Pelos sonhos destruídos, pela morte de tanta gente valorosa. José Afonso foi um dos maiores, ele que nunca quis mostrar-se mais do que aquilo que era: um lutador pela liberdade, tanto na sua vida prática do dia a dia, como na sua arte.

Para que na nossa memória o seu exemplo nunca desapareça.

domingo, agosto 01, 2021

O que (NÃO) fazer quando discordamos de uma lei

 


Artº 16 da Resolução do Conselho de Ministros n.º 101-A/2021:

«3 - Aos sábados, domingos e feriados, bem como às sextas-feiras a partir das 19:00 h, o funcionamento de estabelecimentos de restauração ao abrigo do número anterior, para efeitos de serviço de refeições no interior do estabelecimento, apenas é permitido para os clientes que apresentem Certificado Digital COVID da UE admitido nos termos do Decreto-Lei n.º 54-A/2021, de 25 de junho, ou sejam portadores de um teste com resultado negativo, realizado nos termos do artigo 8.º»

Ou seja, os clientes têm de apresentar o certificado, se quiserem ser servidos. Caso contrário, os empregados não podem servi-los. Não são os empregados que o exigem, é a lei. 

O que fazer, se não concordamos com a lei? Escrever cartas para os jornais, para os sites do Governo, para o Provedor de Justiça, para os deputados da região, etc., com o máximo de assinaturas possíveis, incluindo nelas autoridades reconhecidas. Não sei se podemos fazer muito mais…

Mas o que sei é que O QUE NÃO DEVEMOS FAZER é reclamar junto dos empregados; fazê-lo é pormo-nos no papel daquele “tuga” que pede uma “cunha” para contornar a lei em seu benefício. MUITO MENOS, devemos zangar-nos com os empregados ou com os donos do estabelecimento, porque isso é um pouco como aquele marido que chega a casa e bate na mulher e nos filhos porque o patrão o prejudicou.

quarta-feira, julho 28, 2021

Governo não propõe luto nacional para Otelo Saraiva de Carvalho

 


«Nas mortes de Salgueiro Maia e Melo Antunes não houve declaração de luto nacional, recordaram Marcelo e Costa no velório de Otelo Saraiva de Carvalho.»

Desanima-me António Costa não ter a ambição de ser melhor do que os governantes anteriores, por exemplo, de não querer ser melhor do que Aníbal Cavaco Silva.

Mas, para mim, o pior de tudo é que, quando um estado, um governo e um presidente não celebram condignamente a vida de alguém que, como Otelo Saraiva de Carvalho, contribuiu clara e decisivamente para a implantação de uma sociedade melhor, isso permite a todos os arautos da destruição exaurirem ainda mais o nosso espaço democrático com a celebração da sua morte.


domingo, julho 25, 2021

Morreu Otelo Saraiva de Carvalho (1936-2021)

 


Nunca saberemos quem foi realmente este homem, de tão multifacetada que foi a sua vida e a sua personalidade.

Mas uma coisa sabemos que é absolutamente certa: graças a uma planificação e a um comando geniais, ele iniciou uma Revolução em direção à Democracia.

Eu vivi em ditadura até aos meus 16 anos: desses anos, praticamente, só tenho memórias cinzentas de medo e de violência – em casa, na escola, nas ruas.

Tudo se transforma em Luz e Sonho com o 25 de Abril. Graças a este homem, graças aos Capitães de Abril. Estou-lhe grato, estou-lhes infinitamente grato. É tudo; e é tanto que não há palavras que cheguem.


sábado, julho 10, 2021

Desconvencer um teórico da conspiração

 


Surgem consequências terríveis quando começa a existir, numa determinada população, uma maioria de crentes numa teoria da conspiração. Por isso, ignorar ou menosprezar estas pessoas não é solução.


Quais as razões que levam alguém a acreditar numa teoria da conspiração?

Para satisfazer a necessidade de verdade, clareza e certeza num mundo em que tudo é cada vez mais fluído e vago.

Mas também para sentir alguma segurança e domínio numa sociedade em que as pessoas sentem ter cada vez menos controlo sobre a sua própria vida e isso se tornou assustador. 

E para satisfazer a necessidade de autoestima através da pertença a um grupo (o dos crentes) que é muito solidário entre si.

Além disto, estes crentes sentem-se especiais por perceberem tudo o que os outros não estão sequer a ver.

Constitui também um tipo alternativo de ativismo político para aqueles que não encontram outra forma de o praticar.

São pessoas com um baixo nível de pensamento crítico e que acreditam que a intuição é a forma mais direta e fiável de chegar à verdade. Por isso, tentar mudar o seu pensamento através de argumentos lógicos é mais ou menos inútil porque elas não os valorizam. Até porque estas teorias têm a característica de absorverem qualquer refutação lógica e razoável, transformando esta num novo argumento para suportar a teoria original.


A melhor maneira de evitar a disseminação de teorias da conspiração é combatê-las antes de criarem raízes. Depois disso, é muito difícil desalojá-las, como se vê pelo movimento QAnon nos EUA.

É difícil inclusivamente porque já de si todo o ser humano tem tendência para selecionar, interpretar e aceitar informação (verdadeira ou falsa, não interessa) que confirme as suas opiniões, e para menosprezar toda a informação que as pode contradizer – dá-se a esta predisposição o nome de Viés da Confirmação (veja-se em particular o fenómeno da perseverança de crenças).

Assim, é preciso educar preventivamente as pessoas para o pensamento crítico e para saberem lidar com a informação (principalmente, como detetar a falsa). Aqui, o papel tanto dos pais como da escola (incluindo a universidade) é insubstituível. Aliás, os currículos escolares e os respetivos exames não deveriam sequer privilegiar a aquisição acrítica de conhecimento, baseada por exemplo apenas em argumentos de autoridade.


A melhor forma de lidar com as pessoas que já acreditam mesmo numa teoria da conspiração é empatizar com elas. É provável que elas estejam a sentir medo e ansiedade, que estejam zangadas com os políticos, que se sintam frágeis e vulneráveis e, ao mesmo tempo, confusas e preocupadas. Por isso, hostilizá-las, ridicularizá-las ou fazê-las sentirem-se ainda mais inseguras não é uma tática que resulte.

É bem melhor explorar com elas estas emoções, tentando saber e perceber o que as provoca, mas sempre com uma atitude de abertura e de aceitação (lembremo-nos que nós podíamos estar naquela situação – bom, verdade seja dita, muitas vezes estamos! Quem nunca acreditou numa conspiração, por mais pequena que fosse?).

Na verdade, se falarmos com um crente numa teoria da conspiração, mostrando recetividade às suas opiniões e crenças, torna-se menos difícil conseguirmos persuadi-lo do erro. Por isso, convém sentirmo-nos efetivamente recetivos e mostrá-lo claramente. Por exemplo, deixando a outra pessoa desabafar e, depois, usar frases simples que não denotem dúvida, mas um genuíno interesse em compreender, como “Se eu estou a entender bem, tu achas que…/tu estás a dizer que…” Mesmo que não chegue a persuadir, esta atitude mantém, pelo menos, as vias de comunicação abertas e a relação amigável.


Uma outra via é ajudarmos a pessoa a reestabelecer um sentido pessoal de controlo sobre a sua vida. Neste caso, é crucial o papel das chefias nos locais de trabalho ou dos pais em casa.

Às vezes, é uma boa contribuição para esse fim levar a pessoa a recordar alturas da sua vida em que esteve com um bom controlo sobre a sua própria vida. Ou ajudá-la a ver que continua a ter esse controlo atualmente, e a sentir-se bem com isso.


Finalmente, um dos fatores por detrás da atração que as teorias da conspiração exercem sobre as pessoas é que elas proporcionam uma história atrativa, simples e emocionante, com elevado poder explicativo. Se conseguirmos contrapor uma outra história mais realista, mas com atributos semelhantes, torna-se mais fácil a nossa tarefa de desalojar a crença.


Claro que nada disto tem resultados seguros. Especificamente, há pessoas com uma crença tão forte que acaba por não ser possível trazê-las à razão. Temos de saber aceitar este facto com equanimidade; até porque também precisamos de cuidar de nós próprios a fim de não ficarmos desgastados ou desanimados perante a rigidez e a alienação destas pessoas.

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Para quem quiser aprofundar este tema, sobretudo para quem deseja ter acesso aos estudos científicos realizados nesta área, pode consultar o artigo How Should You Talk To A Loved One Who Believes In Conspiracy Theories?, no qual me baseei para construir a presente publicação.

Para quem pretender estender os seus conhecimentos ao mundo mais geral das “fake news”, pode aceder ao site Lusa: Combate às Fake News – Uma Questão Democrática. Aqui pode encontrar muita informação e muitos recursos, nomeadamente jogos e formação (Curso Cidadão Ciberinformado) gratuitos.

quarta-feira, junho 30, 2021

O que tem de mal o coordenador da Task Force do Plano de vacinação contra a COVID-19 em Portugal aparecer de camuflado militar em público?

 

(foto de Rui Gaudêncio)

O camuflado, ou qualquer outra farda militar, encerra uma carga simbólica poderosíssima de respeito pelas regras, de lealdade inquebrantável perante o inimigo (valor muito importante num país que esteve em guerra até ainda não há muito tempo), de verticalidade e de incorruptibilidade face à sociedade civil. Claro que tudo isto é uma fantasia, como sabemos pelos casos na instituição militar, sejam de corrupção, sejam de desrespeito pela vida, que têm vindo a lume na imprensa.

No entanto, isso não impede que, no mundo ocidental, muita gente anseie por um regime militar; ou, pelo menos, que deseje ser governada por militares. Aliás, nos mais variados países desenvolvidos, os jovens que consideram essencial viver numa democracia estão a reduzir-se a uma significativa minoria. Veja-se um retrato absolutamente assustador das atitudes da população face à ideia de democracia em:

Foa, R. S., & Mounk, Y. (2017). The Signs of Deconsolidation. Journal of Democracy, (1), 5-16.

Vemos bem a que é que esse desejo por militares no governo nos leva no presente (Brasil e Birmânia são dois exemplos devastadores) e no passado, tanto no recente (Chile e Grécia), como no mais longínquo. Mas a evidência não interessa às pessoas. O mito e o símbolo são mais fortes.

O que é aberrante é ver políticos e democratas de esquerda a alimentarem, de forma suicida, este mito perigosíssimo para a democracia… democracia, aliás, que é o que os sustenta a eles próprios.

Quando os políticos passam a mensagem de que fracassaram miseravelmente, e de que têm de ir buscar alguém fora dos quadros profissionais competentes do atual regime (a uma instituição que, pela natureza muito especial das funções a que é habitualmente chamada a exercer, não é intrinsecamente democrática) para resolver um problema, aí não auguro nada de bom para esta democracia.

Por muito excelente pessoa, político e profissional que seja o sr. vice-almirante Gouveia e Melo.

quinta-feira, junho 17, 2021

Onde estão as crianças?

 
(Foto de Basileia, de Raquel Varela)

Em Portugal, o planeamento urbanístico não atribui direito de cidadania às crianças para poderem habitar os espaços públicos, elas com os companheiros ou também juntamente com os adultos. Assim, o planeamento urbano e a respetiva construção raramente contemplam espaços comuns para as crianças conviverem e brincarem confortavelmente e em segurança.

Há, evidentemente, algumas exceções muito esporádicas, principalmente nas urbanizações de luxo, mas mesmo assim só em algumas. E obviamente que não estou a falar de alguns "cercados" apelidados de "parques infantis" que só pelas cores usadas se distinguem de espaços idênticos construídos para cães (estes normalmente até têm mais espaço para correr e saltar).

Ou seja, as crianças em Portugal não são vistas como sujeitos dignos de habitarem a polis com os mesmos direitos dos adultos. Eu, aliás, reduziria a frase anterior para: as crianças não são para serem vistas, ponto final! Que fiquem, pois, confinadas nas escolas e nas casas (há muitos anos que elas andam em confinamento, não foi preciso aparecer a Covid-19)!

Mas não só as crianças mais crescidas. Quem já teve bebés e os quis passear com um carrinho sabe bem a dificuldade que é fazê-lo com comodidade e segurança. É que a rua parece pertencer, acima de tudo, ao carro, à mota e ao camião.

A ideia de cidade como lugar onde se forma e convive uma comunidade é algo que está muito ausente dos planificadores urbanísticos (gente que parece não ter uma centelha de alegria e de afeto pelas pessoas, vendo apenas cifrões à sua volta).

Assim, caminhamos pelas ruas e, pergunto, quando foi a última vez que vimos uma criança?

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Nota: A propósito deste mesmo assunto, escrevi o poema Perdemos as crianças.


quinta-feira, junho 10, 2021

Como @s alun@s ficam fortemente motivados para aprender

 


(...) A criança só pode aprender se primeiro sentir e o sentir refere-se a tudo o que é actividade emocional, jogo, pintura ou canto. A emoção está na base de toda a aprendizagem; a criança aprende quando o seu interesse é suscitado afectivamente ou sentimentalmente pelos problemas (...)

Cada matéria tem a sua linguagem própria e o uso judicioso dos símbolos exige, em regra, uma fase preparatória de iniciação, com carácter lúdico. [Mesmo com adultos, acrescento eu!]

João dos Santos (1991). Ensaios sobre Educação - I - A Criança quem é?. Lisboa: Livros Horizonte. p. 24 e 27

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Dos meus anos de professor, o que eu concluí é que os alunos aprendem entusiasticamente as matérias mais exigentes se, nas aulas, ocorrerem pelo menos estas três condições:

  • O professor mostra na aula, pelo seu comportamento e pelas atividades que planeou para aqueles alunos específicos, que sente que a matéria que ensina é absolutamente apaixonante (e até é, mesmo na minha disciplina que era a Matemática do 3º ciclo e secundário; o professor só precisa diariamente de tempo para o descobrir, e redescobrir, ano após ano – tempo esse que lhe foi completamente roubado desde o governo PS/Sócrates).
  • O aluno gosta da matéria ensinada porque ela lhe diz qualquer coisa e porque (muito importante!) o desafia pessoalmente para algo que ele prevê não só que o vai divertir, mas também fazê-lo sentir-se melhor, quer dizer, mais autónomo, mais competente e mais conectado não só com a matéria que está a aprender, mas também com o mundo em geral. Mais uma vez, para conseguir isto, o professor precisa de tempo (que lhe tiraram).
  • O aluno sente que o professor gosta dele genuinamente, acredita nele e admira-o, seja nos seus esforços, seja nas suas dúvidas e perguntas, seja na sua evolução, seja nas suas realizações (todos estes aspetos são importantes).

Satisfeitas estas três condições, os alunos, todos os alunos, adoram as aulas por mais exigentes que sejam, todos estudam e, felizmente, a maioria adquire o gosto de o fazer.

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Já agora, sem o professor precisar de mandar trabalhos para casa. Por duas razões. A primeira é que, na escola onde eu estava, uma grande parte dos alunos não os fazia. Resultado? Corrigi-los na aula era uma maçada para os que o tinham feito e uma maçada para os que não o tinham feito, ou seja, uma perda de tempo que, sem o tpc a atravancar, eu ocupava de forma muito, mas mesmo muito mais útil. A segunda razão é que os miúdos iam tão carregados de trabalhos para casa que nem tempo lhes ficava para brincarem. Assim, preferi apostar em desenvolver neles o gosto pela matemática porque isso os fazia estudar a matéria com muito mais interesse e empenho do que a técnica dos trabalhos de casa.

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Por outras palavras, o que eu quero dizer, no fundo, é que, nestas discussões sobre educação, se centra habitualmente a atenção na parte cognitiva da aprendizagem, esquecendo aquela que é a verdadeiramente determinante, aquela que decide de tudo, que é a afetiva.

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Claro que é muito difícil plasmar num texto curto toda uma experiência de anos e de aulas.

Saliento que não defendo fazer da aula um lugar de brincadeira (no 3º ciclo e secundário, pois no 1º ciclo, por exemplo, a situação esta questão tem de ser abordada de forma radicalmente diferente). Mas, no entanto, acho que o jogo (este entendido no sentido lato do termo, não de jogos concretos; não, pelo menos no 3º ciclo e secundário de Matemática, que é a minha experiência; penso que será diferente nos 1º e 2º ciclos) é uma das múltiplas componentes de uma aula bem-sucedida, disso não tenho dúvidas nenhumas. Esclareço que falo de bem-sucedida a incluir o sucesso nos exames nacionais (avaliação independente, portanto, do professor em questão).

Dou um exemplo específico. Ao iniciar a matéria de Simetria no 3º ciclo, eu punha o seguinte desafio, para ser resolvido individualmente e em pequenos grupos: “Que palavras se podem construir de modo a terem uma simetria vertical?” Um exemplo de resposta é “ovo”, que não só tem um eixo de simetria vertical a meio da palavra, como ela é simétrica de si própria.

Com este desafio (que não consumia mais do que uns 15 minutos de aula), os alunos ficavam a perceber muitíssimo melhor o conceito de simetria, cuja formalização eu fazia a seguir. Escolhi este exemplo porque, na minha vida de professor, sempre foi a atividade mais espetacular de todas: não havia aluno nenhum, mas mesmo nenhum, que não se interessasse e que não se envolvesse (repare-se, Matemática e Português, os terrores de muitos alunos).

Além disso, eu dizia-lhes que havia uma maneira simples de encontrar as respostas. E, aqui, eu estimulava-os a abordarem este desafio de uma forma inteligente, ensinando-os a resolver problemas. Nota: tratava-se de descobrir primeiro as letras simétricas e, depois, construir palavras com elas - muito mais simples do que andar à procura das palavras em primeiro lugar.

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Voltando à minha ideia principal. Com António Damásio («Biologicamente, houve uma sequência: de seres simples que nem sequer tinham emoções a seres mais complexos em que aparecem as emoções e, depois, seres em que aparece a possibilidade dos factos e da razão. Mas não é possível ter seres que têm unicamente razão sem terem um aspecto subjacente, que é o dos afectos.») pude ver confirmada pela ciência uma ideia que já tinha sido desenvolvida anteriormente por outros pensadores: é que a emoção vem primeiro e a consciência vem depois. Quase sempre e, principalmente, nas crianças. Porquê?

Porque o seu cérebro está em formação até cerca dos 25 anos («It is well established that the brain undergoes a “rewiring” process that is not complete until approximately 25 years of age. (...) The fact that brain development is not complete until near the age of 25 years refers specifically to the development of the prefrontal cortex.»*)

Essa formação começa com as estruturas mais primitivas, ou seja, as que estão mais ligadas às emoções. Principalmente, as que são responsáveis pelas relações sociais porque estas são fundamentais para a sobrevivência da criança nos seus primeiros tempos de vida. Portanto, tudo começa no relacionamento social. O resto vem depois, sobre essas emoções chamemos-lhes sociais.

Assim, eu acredito que o princípio de uma educação (que inclui a transmissão exigente e rigorosa de conhecimentos) está de facto na relação social afetiva com o professor. Mais uma vez, afeto entendido de uma forma lata, isto é, não de apenas simpatizar com o professor só porque “ele é um tipo fixe”. Embora, também mais uma vez, esta faceta seja uma das componentes importantes, porque é uma das bases para uma relação de confiança mútua, permitindo que o aluno esteja mais aberto e pronto a aceitar e a envolver-se em todas as propostas (conhecimentos e o resto de que falei no comentário que fiz anteriormente) que o professor trouxer para a aula.

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Antes de terminar, gostaria ainda de acentuar que alguns mal-entendidos, que surgem nas discussões sobre educação, nascem do facto de não se especificar a que níveis de ensino se referem os argumentos trocados. Explico-me melhor: 

Há uma grande diferença entre o nível universitário (onde, em princípio, o aluno está a estudar porque decidiu livremente que quer aprender mais sobre a área de conhecimento que o atrai) e os outros níveis de ensino em que ele está lá obrigado, não teve escolha ou teve pouca (e um alerta: genericamente, o ser humano não reage bem quando o obrigam de fora a fazer seja o que for… Em Psicologia, isto tem um nome: reatância psicológica).

Há uma diferença abissal entre o 1º ciclo e o secundário. Ou seja, aquilo que é sumamente infantil e regressivo (no sentido psicanalítico do termo) fazer com os jovens deste último nível de ensino da escolaridade obrigatória pode ser, no 1º ciclo, a forma mais adequada de induzir nas crianças o gosto pelo trabalho e pelo conhecimento.

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* Arain et al (2013). Maturation of the adolescent brain. Neuropsychiatric Disease and Treatment 2013:9, 449–461

quinta-feira, maio 20, 2021

Porque é que as zebras não apanham úlceras?

 

Why Zebras Don’t Get Ulcers é um livro de 1994 (nunca traduzido em Portugal) do biólogo e neuroendocrinologista Robert M. Sapolsky.

Quando a zebra está calmamente a almoçar e ouve um barulho (que nove vezes em cada dez é um falso alarme, porém a zebra tem de assumir que não é, pois não há segundas oportunidades na selva), ela tem uma reação fisiológica de stress quase instantânea. Para a zebra, que responde fugindo, este stress só tem efeitos benéficos… porque dura segundos, no máximo poucos minutos. Rapidamente, afastada a presença física do perigo, ela volta ao seu almoço na maior das tranquilidades.

Não assim com os seres humanos, numa situação semelhante. Passada a ameaça, o ser humano continua em stress: “E se o leão volta e eu não dou conta? E se vem de noite e eu não o vejo? E se ataca os meus filhos que não conseguem fugir como eu? E se forem vários leões a cercar-me?” Etc., etc. Ao contrário das zebras, a ausência de perigo não representa para nós, humanos, a ausência de ameaça.

O problema é que a reação fisiológica de stress deixa de ter efeitos benéficos no organismo num espaço de segundos a minutos. E em nós, esta reação pode prolongar-se por horas, dias , semanas,… Por isso, nós temos úlceras e as zebras não. 

segunda-feira, maio 17, 2021

Desolação com a morte do Capitão Diniz de Almeida (16/05/2021)

Que imensa tristeza esta notícia me trouxe!

Porque, no meu imaginário, o Capitão Diniz de Almeida é um dos símbolos máximos da generosidade e da solidariedade com todos os oprimidos e deserdados da sorte.

Hoje, a morte dele também simboliza para mim a agonia crescente dos sonhos e dos ideais luminosos da juventude que ele e o 25 de Abril personificavam para tantos de nós.

Hoje, dolorosamente, morri mais um pouco.

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Importante entrevista à RTP de António Louçã, "um dos últimos jornalistas que entrevistou Diniz de Almeida", que nos dá um belo e muito humano retrato deste Capitão de Abril.

Também:

Discurso de Dinis de Almeida (Capitão de Abril) nas comemorações do 25 de Abril, CDU Mina de Água

O 11 de Março 40 anos depois: entrevista com Dinis de Almeida

https://www.dn.pt/dossiers/politica/a-revolucao-de-abril/noticias/o-fim-de-um-icone-da-revolucao-1210766.html

https://www.esquerda.net/artigo/diniz-de-almeida-1944-2021-o-capitao-de-abril-na-linha-da-frente-da-revolucao/74423

Diniz de Almeida: a derrota "vergonhosa" dos golpistas

Morreu o coronel Diniz de Almeida, vítima de covid-19


domingo, maio 16, 2021

Sobre o Assédio Sexual (artigo que talvez nunca deixe de estar em construção)

 


Há uma linha vermelha para o assédio que o distinga da sedução? Há. É quando uma das partes mostra inequivocamente que não quer e a outra continua a invadir o seu espaço íntimo. Há abuso? Há, quando, perante o não, a parte mais poderosa ameaça a outra e/ou se vinga dela. Há um verdadeiro crime de abuso? Há, quando ele é concretizado por via da força e da violência, principalmente quando há um grande diferencial de poder, por exemplo, no caso de um adulto na pessoa de uma criança.

Depois, há muitas situações menos claras. Por exemplo, entre duas crianças. Ou entre uma criança e um adolescente. Ou quando aquele que não quer sente um pavor tal que fica paralisado e não consegue sequer mostrar que não quer. Ou outras situações. Sejam elas quais forem, a prudência e a justiça mandam que talvez não devamos julgar a vítima (exceto se tivermos sido os juízes mandatados para o fazer).

 

Das muitas mulheres que amei a quem nunca cheguei a dizer ou sequer a mostrar que estava apaixonado, houve uma a quem, muitos anos depois, confessei o que tinha sentido. Ela exclamou: “Então, porque é que não disseste nada? É que eu também estava apaixonada por ti!”.

Naquela altura, esperava-se que fosse o homem a declarar-se. A mulher que o fizesse era bastante mal vista, principalmente se confessasse o seu desejo. Várias raparigas, frustradas perante a minha contenção (ainda por cima, eu era um bocado obtuso, não percebia se elas estavam ou não realmente interessadas em mim), perguntavam aos meus amigos da altura se eu era gay. Estes transmitiam-mo para ver se eu mudava de comportamento. Ora, eu tinha muito antes decidido não seguir esse código social, para grande perplexidade e incompreensão da parte delas (e deles também, diga-se a verdade). Portanto, não mudava, mas também não sabia como fazer de modo diferente (acrescento que essa decisão nasceu do terrível choque que foi para mim a leitura, em plena adolescência, do livro Escravatura Sexual, de Stephen Barlay). Creio que fui deste modo criando a pouco e pouco uma provável e errada reputação de homossexual.

Assim, por causa desta pressão social, na verdade, quantos homens poderão ser acusados de claro assédio sexual intencional e manipulador? De marialvismo, bastantes. De mulherengos, muitos. De incorretos, mal educados e boçais? Muitos mais do que seria de desejar. Mas alguém que não força, pergunta sempre, não constrange, não ameaça nem se vinga, estarei a ser injusto se puser a hipótese de que isso talvez não configure assédio sexual? Que aliás se define como:

Assédio sexual é todo o comportamento indesejado de caráter sexual, sob forma verbal, não verbal ou física, com o objetivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afetar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador.


Alberto Caeiro

VIII - Num meio-dia de fim de Primavera

(…)

E, porque sabe que elas não gostam

E que toda a gente acha graça,

Corre atrás das raparigas

Que vão em ranchos pelas estradas

Com as bilhas às cabeças

E levanta-lhes as saias.

(…)

Este texto de Alberto Caeiro mostra como naquele tempo era considerado "engraçado" o levantar as saias às raparigas. Por isso, pergunto-me se haverá algum homem que possa dizer-se completamente inocente de assediar as mulheres? E, sendo assim, nós homens teremos algum direito ou alguma autoridade para dizer às mulheres os termos em que elas devem partilhar as suas queixas? Suponho que não.

Falando por mim, também eu levantei as saias a uma menina minha colega de turma uma vez, na escola primária (que era mista, algures entre 1966 e 1968) e lembro-me disso com uma nitidez que a imensa vergonha e mágoa que ainda hoje sinto mais acentuam. 

Depois de 1968 (ano em que entrei no 2º ciclo, mas agora numa escola já só com rapazes), algo deve ter acontecido, não me lembro do quê, porque comecei a defender as raparigas na rua de maus-tratos verbais e físicos (desde o simples molhá-las com pistolas de água no Carnaval até coisas mais graves). Podia fazê-lo porque eu tinha um físico possante e impunha respeito aos outros. Mas a tristeza e a vergonha que ainda hoje me assombram (lembro-me perfeitamente da rapariga a quem levantei as saias e do seu primeiro nome, bem como da forma aflita como reagiu), essas ficaram para sempre.


Às vezes, pergunto-me se os muçulmanos mais radicais não estarão, na sua sabedoria (se ela é válida ou não, é outra questão), a ver as coisas com uma lucidez que nos está a faltar a nós. O facto de obrigarem as mulheres a taparem a maior parte ou a totalidade do seu corpo para não excitar os impulsos selváticos dos homens, não estarão a demonstrar a visão que têm deles como primitivos subdesenvolvidos incapazes de autocontrolo?


Em suma, seja qual for o conteúdo e a forma da denúncia que for feita por uma mulher, o que eu sei é que, na dúvida, estou sempre do lado da vítima, do mais fraco, daquele que relata as coisas com mais incongruências (principalmente, se souber perfeitamente como não o fazer).

Conhecemos alguma mulher que não tenha nunca sido assediada sexualmente na rua? Portanto, quando as mulheres se queixam é provável que estejam a dizer a verdade. Eu, pelo menos, à partida respeito todos os seus testemunhos.

E também o que sei é que, nesta matéria que tem séculos, se não houver alguma violência da parte dos tradicionalmente fracos, nada mudará na relação de poder e de abuso.

Finalmente, sei que nesta e noutras áreas, se a mulher não se comportar como soldado perdido em território inimigo, na formulação feliz de Arturo Pérez-Reverte, é destroçada pelos homens (e pelas mulheres que se identificaram com os valores masculinos):

Não sei se todas as mulheres são assim, mas queria descrever uma mulher que é um soldado perdido em território inimigo. Creio que o último herói realmente romanesco que resta à cultura ocidental é a mulher. Reúne todas as características: tem de trilhar o mundo dos homens com regras feitas pelos homens; tem de ser tão ou mais eficaz que eles; os erros delas pagam-se mais caros do que os dos homens e, ao mesmo tempo, não deixa de ser mulher, de conservar toda a sua herança biológica, aquilo a que chamo «instinto de ninho».

terça-feira, maio 11, 2021

E se os livros não nos preparam para a vida?

Não sabia como é vasto, árido e escarpado o país que o viajante da vida tem de atravessar para poder aceitar a realidade. É uma ilusão pensar que a mocidade seja feliz, uma ilusão daqueles que a perderam. Os jovens sabem que são miseráveis, pois alimentam os falsos ideais que lhes foram incutidos e todas as vezes que entram em contato com o real sentem-se magoados e contundidos. Dir-se-ia serem vítimas de uma conspiração. Os livros que lêem, livros ideais pela necessidade de seleção, e a conversa dos mais velhos, que olham para o passado através da nuvem rosada do esquecimento, preparam-nos para uma vida irreal. São obrigados a descobrir por si próprios que tudo o que leram e tudo o que lhes ensinaram é mentira, mentira, pura mentira. Cada nova descoberta é mais um prego que lhes fixa o corpo à cruz da vida. (…) (p. 111)

Esta foi mesmo a minha vivência (nasci em 1958 e na biblioteca do meu pai estavam muitos livros cuja leitura me era proibida).

Hoje, penso que é diferente. Porque, desde crianças, todos têm acesso aos aspetos mais sórdidos e doentios da realidade e da fantasia do mundo (no entanto, não esqueçamos que tudo o que possamos ler, livros realistas ou não, tudo é sempre irreal porque 1) é a perspetiva singular de quem está a escrever; e 2) as palavras não espelham a realidade nunca).

Quem fica ou ficou melhor? Não sei responder. Mas avento a hipótese de que a sociedade, essa, fica pior. Pois parece-me que uma sociedade evolui principalmente devido àqueles que não aceitam as deformidades que ela revela, isto é, àqueles que (muito provavelmente com a leitura que dá mais espaço à reflexão) criaram dentro de si um ideal e que não se resignam. 

sexta-feira, maio 07, 2021

Um filme sempre a ecoar em mim

 

Wrestling Ernest Hemingway conta a história de um beberrão e cortejador (Richard Harris), que tenta flirtar várias mulheres, incluindo de uma forma mais autêntica a sua senhoria (Shirley MacLaine) – que, aliás, não vai na conversa dele – e que tenta travar uma amizade difícil com um refugiado cubano (Robert Duvall) que ama suavemente uma empregada de restaurante (Sandra Bullock, num papel de uma inolvidável doçura que me fez ficar apaixonado por ela da primeira vez que vi o filme).

Porque é um dos filmes da minha vida? Talvez porque, neste filme, Randa Haines trata da velhice, da solidão, da amizade possível, de amores que nunca chegam a realizar-se, com um humor e uma leveza que quase me causa um soluço de angústia sempre que o revejo.

sábado, fevereiro 20, 2021

Hipótese para a compreensão de algumas pessoas que apoiam partidos e políticos da extrema-direita radical. E uma proposta de abordagem ao problema.

 

(Francisco de Goya - Duelo a Garrotazos)

Cometemos habitualmente o erro de acreditar que, no ser humano, as razões antecipam as emoções e as decisões. A maior parte das vezes, não é verdade, tanto quanto se sabe, hoje em dia. Vergílio Ferreira alertou-nos muitas vezes: «As verdades fundamentais fulguram primeiro e depois é que se disciplinam em razões.» (em Do mundo original, 1979, Lisboa, Livraria Bertrand, p.119)

Portanto, na prática, a maior parte das pessoas não foi convencida por André Ventura. O discurso deste é que deu uma voz, uma organização e uma ação a quem estava predisposto a estas ideias ou já estava decidido sobre elas. Ou seja, acreditar em André Ventura não é mérito dele, é apenas uma consequência das emoções e ideias que as pessoas já tinham. Estas crenças e emoções já existiam, não tinham era sido publicamente mobilizadas, talvez por vergonha de opróbrio público.

 

Mas agora várias circunstâncias ajudaram a ultrapassar esta barreira.

Primeiro, a disseminação das redes sociais que levaram à descoberta de que se podia dizer aquelas coisas em público e ter muita gente a apoiá-las.

Segundo, ter surgido um ativista político a dizê-las sem ser expulso de um partido do arco do poder (quando, como candidato à Câmara de Loures, André Ventura fazia parte do PSD de Passos Coelho), nem ser travado pela Justiça.

Em terceiro lugar, a neutralidade, o silêncio e o ignorar dos poderosos.

Ficaram assim expostos os sinais claros de que se poderia dar a emergência daquelas emoções e sentimentos mais retrógrados e negativos, sem perigo nem vergonha.

Veja-se, aliás, o caso infame de Ihor Homeniuk que foi o culminar de anos de abusos e torturas a pessoas inocentes com a complacência e o encorajamento disfarçado do Governo, ignorandoas recomendações que o Mecanismo Nacional de Prevenção da Tortura fazia desde,pelo menos, 2018.

Ou de inúmeros políticos, nacionais e estrangeiros (em Portugal, Espanha, França, Itália, etc.) que têm vindo a põr em prática políticas de discriminação contra comunidades ciganas, como se fosse legal ou ético fazê-lo seja com quem for.

 

O problema vai-se tornando mais grave quando um líder começa a catalisar este caldo de emoções a fim de unir as pessoas em multidões que se sentem suficientemente organizadas para iniciarem uma ação violenta. O que até agora, mas apenas até agora, não foi o caso em Portugal.

 

A um nível individual, quando é que temos uma resposta violenta? Quando ativamos o sistema neurocomportamental de regulação de emoções focado na ameaça e na autoproteção. A resposta torna-se ainda mais violenta se, simultaneamente, se se frustrar o sistema neurocomportamental focado na busca de recursos e de incentivos.

Para estimular estes processos de ativação e de frustração nas pessoas, o líder proclama que o mundo é um lugar perigoso, que está dominado pelo mal, que só ele o conseguirá pôr bom e que, inclusivamente, só ele conseguirá proteger as pessoas de bem, mesmo que para isso precise do poder total, ou seja, de uma ditadura.

 

A um nível grupal, isto piora se estas pessoas percecionarem que o seu grupo está em conflito com outros grupos. Principalmente, se favorecerem vias mais agressivas e violentas para conseguirem o que querem, devido a privilegiarem precisamente a agressividade e a violência, e devido a se sentirem mais fortes do que os outros grupos.

Note-se, aliás, que se estas pessoas realmente acreditassem na propaganda que diz que elas não têm poder para fazer frente aos outros grupos (mensagem passada pelo líder populista), elas fugiriam, não lutariam.

Como esses outros grupos são na verdade minoritários e com menos poder, elas sentem-se à vontade para terem preconceitos contra eles e para apoiarem ações discriminatórias.

 

Uma outra característica destas pessoas consiste em elas tenderem a escolher líderes mais autoritários, mais fortes ou mesmo brutos. Porque estes são vistos como os mais capazes de acelerar a coordenação dentro do grupo, de forma a este ficar mais rapidamente organizado e capaz que o grupo inimigo.

Por isso, é natural que elas tendam também a escolher líderes que não respeitem as regras. Regras essas que, no fundo, elas acham que fizeram o outro grupo ficar mais forte. Daí que é precisamente o facto de esses líderes serem descaradamente mentirosos, oportunistas e malcriados que os torna mais atraentes para estas pessoas por assim se revelarem claramente contra o sistema em relação ao qual elas se sentem revoltadas e que desejam deitar abaixo.

 

A sustentar todos estes processos, temos a tendência da natureza para escolher as vias mais fáceis e mais “económicas”, isto é, menos consumidoras de energia. Esta tendência leva ao que alguns investigadores chamam de “preguiça cognitiva” que tem como consequência a adesão a ideias simples, fáceis e carregadas emocionalmente (que assim, nos dispensam de refletir). Ideias essas que caracterizam habitualmente as arengas destes políticos e as notícias falsas. Esta hipótese, a ser verdadeira, é um pouco desanimadora pois pouco se pode fazer para a contrariar no curto prazo (a longo prazo, só na escola, ensinando experiencialmente que o prazer e as vantagens de pensar racionalmente se sobrepõem em larga medida às dificuldades em fazê-lo).

 

A acrescentar a tudo isto, muitas destas pessoas já não acreditam nas instituições e desejam uma revolução que permita começar tudo do zero. Essas pessoas, há umas décadas, seriam de esquerda, hoje são de direita. É irresistível pensar que a nossa matriz cultural judaico-cristã tem aqui uma influência extraordinária: a ideia emocionalmente apelativa de um dilúvio que destrua e apague tudo, mas que permita um novo recomeço; acompanhada, claro, da ilusão de que lhe sobreviveremos porque estaremos cada um de nós dentro da Arca de Noé.

Podem-se apresentar várias causas possíveis para a raiva das pessoas contra as instituições: a desigualdade social que tem vindo a aumentar de modo ostensivo; a corrupção com a cumplicidade dos grandes poderes; o uso da força com quem é fraco e as manifestações de fraqueza com quem é poderoso; a sensação de absoluta impotência face aos poderosos; o sentirem-se remetidas para uma solidão cada vez maior; e a constatação de que a sua voz não é ouvida por nenhum decisor com poder.

Peguemos, a título de exemplo, no caso da desigualdade. Os protestos destas pessoas são sempre contra um determinado tipo de desigualdade, real ou imaginária, mas não contra onde ela é maior e causa verdadeiramente o seu mal-estar. Explicando melhor, as pessoas pegam nessa raiva contra os poderosos (que sabem ser sem esperança, visto que as instituições que deviam regular o poder falharam) e desviam-na para grupos minoritários e mais inofensivos.

 

E aqui, surge um outro problema. Os conflitos de opiniões são inevitáveis numa democracia e não a põem em perigo, pelo contrário. Mas quando ficamos convencidos de que o benefício de outro grupo é um prejuízo para nós, quando não sentimos que estamos todos no mesmo barco, que há gente que deve ir borda fora (e que podemos fazê-lo sem custos), que não há qualquer interesse em trabalhar em conjunto para resolver os problemas, então estamos em território muito perigoso (que pode chegar à guerra mesmo).

 

Além disso, um novo fator a ter em conta, hoje em dia, é o facto de as redes sociais terem um papel extraordinariamente importante na comunicação, coordenação e afunilamento de crenças e de esforços em tempo real. O problema é que elas nunca incentivam a manter as pessoas e as ideias calmas, pois não é isso que lhes faz gerar tráfego nem dinheiro. Ou seja, elas tendem a fornecer mais combustível para incendiar as mentes das pessoas.

Portanto, nas redes sociais, temos um dilema: como é que a nossa sociedade consegue proteger uma maioria relativamente calma de uma minoria relativamente violenta? Por autorregulação das próprias redes? Quando o fazem, elas são criticadas por fazerem censura. Por imposição do poder político? Outra vez críticas de censura. Não se vê uma saída fácil para a complexidade desta situação.

 

Porém, pelo menos ao nível do contacto direto com estas pessoas, o que podemos nós fazer para contrariar estes movimentos disruptores da nossa democracia, tanto no que se refere à emergência de ideias, crenças e sentimentos retrógrados e agressivos, como no que se refere à sua coordenação e à sua posterior transformação em ações violentas?

 

A primeira sugestão é claramente começarmos por ouvir as frustrações destas pessoas. Não só para perceber e validar as suas emoções, mas também para descobrirmos com que circunstâncias elas se sentem exatamente revoltadas. E não, não serve absolutamente para nada confrontá-las com argumentos, ou com julgamentos ou com condenações. Elas sentirão tudo isto como um ataque pessoal e irão entrincheirar-se mais solidamente nas suas ideias e nas suas emoções negativas (que serão, por este processo, ainda mais exacerbadas).

A seguir, tentarmos saber que benefícios concretos (não os vagos e abstratos para a sociedade em geral, dado que não são esses que movem verdadeiramente as pessoas a um nível individual) elas esperam obter por meio de uma mudança de políticas.

Depois, procurarmos encontrar soluções abrangentes e satisfatórias para todos, tendo o cuidado de, no processo, e sem tentar enganá-las, esforçarmo-nos por conseguir acender e alimentar a esperança de uma vida melhor para todas estas pessoas.

Encontradas as soluções mais inclusivas para a satisfação das necessidades de todos, o passo seguinte é unir e canalizar os esforços das pessoas para pressionar efetivamente os poderes a porem em prática estas soluções, dando assim a elas benefícios concretos (por exemplo, garantindo uma melhor distribuição da riqueza a fim de se gerar menos desigualdade).

Finalmente, e não menos importante do que tudo o resto, lutar pela reconciliação, a fim de levar as pessoas a sentirem-se suficientemente seguras para poderem deixar de ser tribais. Nomeadamente, para porem de lado a noção de que a tribo dos outros está contra a minha e a pô-la em perigo .

E podermos passar todos, dentro deste território, a viver em paz e com bem-estar, como uma só comunidade e um só povo.


quarta-feira, fevereiro 03, 2021

sexta-feira, janeiro 29, 2021

Como escolho em quem votar?

A minha posição política face a todas as eleições define-se através da resposta a duas perguntas que considero determinantes para a minha decisão.

1º, qual o principal problema-raiz do nosso país, origem de todos os outros, a que se deve dar a máxima atenção? A CORRUPÇÃO, não dos pobres e desprotegidos que essa a polícia dá bem conta dela; mas a dos ricos e poderosos que é muito mais terrível, destruidora e impune, e que lançou tantos milhares de famílias na miséria nos últimos anos.

2º, quais são os VALORES a que eu dou mais importância na política? Compaixão pelos injustiçados. Coragem para enfrentar os poderosos (todos os poderosos, incluindo os do seu próprio partido, e não os fracos e indefesos, pois isso apenas revela cobardia). Decência. Honestidade. Fidelidade a valores democráticos. E simples boa educação.

Porque houve uma candidata que sempre revelou em toda a sua vida que preenche estes requisitos no mais elevado grau, todos sem exceção, eu votei em Ana Gomes para Presidente da República Portuguesa, em 2021.


(foto de Eduardo Gageiro)