sexta-feira, abril 28, 2006

O Estrangeiro, de Camus

Acabei de reler O Estrangeiro. Muito complicado escrever sobre este perturbante livro sem o "reduzir". De modo que deixo aqui algumas notas soltas sem pretensões "totalizantes".

É-se Estrangeiro num mundo que não tem sentido, em que casar ou matar, tudo se equivale, tudo vem a dar no mesmo, tanto lhe faz.

Ele parece estar ligado à sua verdade, não finge. O problema é que ele actua como se não houvesse verdade nenhuma. Portanto ou essa verdade não existe, ou ele não lhe está ligado. Daí que ele não escolhe, segue as escolhas dos outros por indiferença e tédio (excepto na religião, no final, talvez por um sobressalto de fidelidade a uma sua verdade que só ali se lhe revela).

Um dos aspectos mais eticamente discutíveis no livro: se é verdade que ele nunca chega a aperceber-se que o "árabe" é uma pessoa, um ser vivo como ele, nunca lhe faz impressão o ter morto um ser humano porque ele não o vê como tal (por isso, também nunca se arrepende, apenas se aborrece), o certo é que o tribunal também nunca se detém sobre esse aspecto.

A única coisa que o faz feliz é ser aceite pelos outros. A única coisa que o faz sofrer é que o detestem.

Apercebe-se de muito poucos sentimentos (tê-los, deve ter, ele não chega é lá). Apenas a nostalgia por ter perdido a liberdade bem como a cidade onde pensa ter sido feliz; e o medo da morte. Pouco mais. Por isso nem se permite reagir humanamente.

Depois disto tudo: é ele um "estrangeiro" para mim? Um fascínio visceral, embora talvez negro, bem como a adesão entusiástica de tanta gente a este romance, leva-me a dizer prudentemente que não, que não é um completo estrangeiro. Apesar de pensar que não sou; ou que talvez esteja a deixar de ser este estrangeiro... se calhar, sem nunca deixar de o ser, sendo apenas outro...


Começo a perceber porque é que, na minha juventude, Camus foi um dos fundadores da minha maneira de estar e de sentir o mundo (juntamente, mais tarde, com Vergílio Ferreira). Nos três livros que reli (A Queda, Os Justos e este) as pessoas que constituem o eixo da narrativa estão sempre em estado de desajustamento e de desadequação em relação à realidade. Melhor, em relação ao consenso criado socialmente sobre o que é ou deve ser a realidade.

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